sábado, 24 de março de 2018

Estudo Especial para a Páscoa 2018

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Especial de Páscoa

Santo Agostinho, Bispo de Hipona (354-430)
Sermões para a Vigília Pascal e para o Dia da Ressurreição de Cristo




«Na Vigília da Páscoa»
O bem-aventurado apóstolo Paulo, exortando-nos a que o imitemos, dá entre outros sinais de sua virtude o seguinte: "freqüente nas vigílias" 1.
Com quanto maior júbilo não devemos também nós vigiar nesta vigília, que é como a mãe de todas as santas vigílias, e na qual o mundo todo vigia?
Não o mundo, do qual está escrito: "Se alguém amar o mundo, nele não está a caridade do Pai, pois tudo o que há no mundo é concupiscência dos olhos e ostentação do século, e isto não procede do Pai" 2.
Sobre tal mundo, isto é, sobre os filhos da iniqüidade, reinam o demônio e seus anjos. E o Apóstolo diz que é contra estes que se dirige a nossa luta: "Não contra a carne e o sangue temos de lutar, mas contra os principados e as potestades, contra os dominadores do mundo destas trevas" 3.
Ora, maus assim fomos nós também, uma vez; agora, porém, somos luz no Senhor. Na Luz da Vigília resistamos, pois, aos dominadores das trevas.
Não é, portanto, esse o mundo que vigia na solenidade de hoje, mas aquele do qual está escrito: "Deus estava reconciliando consigo o mundo, em Cristo, não lhe imputando os seus pecados" 4.
E é tão gloriosa a celebridade desta vigília, que compele a vigiarem na carne mesmo os que, no coração, não digo dormirem, mas até jazerem sepultos na impiedade do tártaro. Vigiam também eles esta noite, na qual visivelmente se cumpre o que tanto tempo antes fora prometido: "E a noite se iluminará como o dia" 5. Realiza-se isto nos corações piedosos, dos quais se disse: "Fostes outrora trevas, mas agora sois luz no Senhor". Realiza-se isto também nos que zelam por todos, seja vendo-os no Senhor, seja invejando ao Senhor. Vigiam, pois, esta noite, o mundo inimigo e o mundo reconciliado. Este, liberto, para louvar o seu Médico; aquele, condenado, para blasfemar o seu Juiz. Vigia um, nas mentes piedosas, ferventes e luminosas; vigia o outro, rangendo os dentes e consumindo-se. Enfim, ao primeiro é a caridade que lhe não permite dormir, ao segundo, a iniqüidade; ao primeiro, o vigor cristão, ao segundo o livor diabólico. Portanto, pelos nossos próprios inimigos sem o saberem eles, somos advertidos de como devamos estar hoje vigiando por nós, se por causa de nós não dormem também os que nos invejam.
Dentre ainda os que não estão assinalados com o nome de cristãos, muitos são os que não dormem esta noite por causa da dor, ou por vergonha. Dentre os que se aproximam da fé, há os que não dormem por temor. Por motivos vários, pois, convida hoje à vigília a solenidade (da Páscoa). Por isso, como não deve vigiar com alegria aquele que é amigo de Cristo, se até o inimigo o faz, embora contrariado? Como não deve arder o cristão por vigiar, nessa glorificação tão grande de Cristo, se até o pagão se envergonha de dormir? Como não deve vigiar em sua solenidade, o que já ingressou nesta grande Casa, se até o que apenas pretende nela ingressar já vigia?
Vigiemos, e oremos; para que tanto exteriormente quanto interiormente celebremos esta Vigília. Deus nos falará durante as leituras; falemos-lhe também nós em nossas preces. Se ouvimos obediente as suas palavras, em nós habita Aquele a. quem oramos.
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NOTAS:
1 2Cor 11,27 / 2 1]0 2,15 / 3 Ef 6,12 / 4 2Cor 5,19
5 SI 138,12.

«Sobre a Ressurreição de Cristo, segundo São Marcos»
A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo lê-se estes dias, como é costume, segundo cada um dos livros do santo Evangelho. Na leitura de hoje ouvimos Jesus Cristo censurando os discípulos, primeiros membros seus, companheiros seus: porque não criam estar vivo aquele mesmo por cuja morte choravam. Pais da fé, mas ainda não fiéis; mestres - e a terra inteira haveria de crer no que pregariam, pelo que, aliás, morreriam - mas ainda não criam. Não acreditavam ter ressuscitado aquele que haviam visto ressuscitando os mortos. Com razão, censurados: ficavam patenteados a si mesmos, para saberem o que seriam por si mesmos os que muito seriam graças a ele.
E foi deste modo que Pedra se mostrou quem era: quando iminente a Paixão do Senhor, muito presumiu; chegada a Paixão, titubeou. Mas caiu em si, condoeu-se, chorou, convertendo-se a seu Criador.
Eis quem eram os que ainda não criam, apesar de já verem. Grande, pois, foi a honra a nós concedida por aquele que permitiu crêssemos no que não vemos! Nós cremos pelas palavras deles, ao passo que eles não criam em seus próprios olhos.
A ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo é a vida nova dos que crêem em Jesus, e este é o mistério da sua Paixão e Ressurreição, que muito devíeis conhecer e celebrar. Porque não sem motivo desceu a Vida até a morte. Não foi sem motivo que a fonte da vida, de onde se bebe para viver, bebeu desse cálice que não lhe convinha. Por que a Cristo não convinha a morte.
De onde veio a morte?
Vamos investigar a origem da morte. O pai da morte é o pecado.
Se nunca houvesse pecado ninguém morreria. O primeiro homem recebeu a lei de Deus, isto é, um preceito de Deus, com a condição de que se o observasse viveria e se o violasse morreria. Não crendo que morreria, fez o que o faria morrer; e verificou a verdade do que dissera quem lhe dera a lei. Desde então, a morte. Desde então, ainda, a segunda morte, após a primeira, isto é, após a morte temporal a eterna morte. Sujeito. a essa condição de morte, a essas leis do inferno, nasce todo homem; mas por causa desse mesmo homem, Deus se fez homem, para que não perecesse o homem. Não veio, pois, ligado às leis da morte, e por isso diz o Salmo: "Livre entre os mortos" 1.
Concebeu-o, sem concupiscência, uma Virgem; como Virgem deu-lhe à luz, Virgem permaneceu. Ele viveu sem culpa, não morreu por motivo de culpa, comungava conosco no castigo mas não na culpa. O castigo da culpa é a morte. Nosso Senhor Jesus Cristo veio morrer, mas não veio pecar; comungando conosco no castigo sem a culpa, aboliu tanto a culpa como a castigo. Que castigo aboliu? O que nos cabia após esta vida. Foi assim crucificado para mostrar na cruz o fim do nosso homem velho; e ressuscitou, para mostrar em sua vida, como é a nossa vida nova. Ensina-o o Apóstolo: "Foi entregue por causa dos nossos pecados, ressurgiu por causa da nossa justificação" 2.
Como sinal disto, fora dada outrora a circuncisão aos patriarcas: no oitavo dia todo indivíduo do sexo masculino devia ser circuncidado. A circuncisão fazia-se com cutelos de pedra: porque Cristo era a pedra. Nessa circuncisão significava-se a espoliação da vida carnal a ser realizada no oitavo dia pela Ressurreição de Cristo. Pois o sétimo dia da semana é o sábado; no sábado o Senhor jazia no sepulcro, sétimo dia da semana. Ressuscitou no oitavo. A sua Ressurreição nos renova. Eis por que, ressuscitando no oitavo dia, nos circuncidou.
É nessa esperança que vivemos. Ouçamos o Apóstolo dizer: "Se ressuscitastes com Cristo..." 3 Como ressuscitamos, se ainda morreremos? Que quer dizer o Apóstolo: "Se ressuscitastes com Cristo?" Acaso ressuscitariam os que não tivessem antes morrido? Mas falava aos vivos, aos que ainda não morreram... os quais, contudo, ressuscitaram: que quer dizer?
Vede o que ele afirma: "Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas que são do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que está sobre a terra. Porque estais mortos!"
É o próprio Apóstolo quem está falando. Ora, ele diz a verdade, e, portanto, digo-a também eu... E por que também a digo? "Acreditei e por causa disto falei" 4.
Se vivemos bem, é que morremos e ressuscitamos. Quem, porém, ainda não morreu, também não ressuscitou, vive mal ainda; e se vive mal, não vive: morra para que não morra. Que quer dizer: morra para que não morra? Converta-se, para não ser condenado.
"Se ressuscitastes com Cristo", repito as palavras do Apóstolo, "procurai o que é do alto, onde Cristo está assentado à direita de Deus, saboreai o que é do alto, não o que é da terra. Pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, aparecer, então também aparecereis com ele na glória". São palavras do Apóstolo. A quem ainda não morreu, digo-lhe que morra; a quem ainda vive mal, digo-lhe que se converta. Se vivia mal, mas já não vive assim, morreu; se vive bem, ressuscitou.
Mas, que é viver bem? Saborear o que está no alto, não o que sobre a terra. Até quando és terra e à terra tornarás? Até quando lambes a terra? Lambes a terra, amando-a, e te tornas inimigo daquele de quem diz o Salmo: "os inimigos dele lamberão a terra" 5.
Que éreis vós? Filhos de homens. Que sois vós? Filhos de Deus.
O filhos dos homens, até quando tereis o coração pesado? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?
Que mentira buscais? O mundo.
Quereis ser felizes, sei disto. Dai-me um homem que seja ladrão, criminoso, fornicador, malfeitor, sacrílego, manchado por todos os vícios, soterrado por todas as torpezas e maldades, mas não queira ser feliz. Sei que todos vós quereis viver felizes, mas o que faz o homem viver feliz, isso não quereis procurar. Tu, aqui, buscas o ouro, pensando que com o ouro serás feliz; mas o ouro não te faz feliz. Por que buscas a ilusão? E com tudo o mais que aqui procuras, quando procuras mundanamente, quando o fazes amando a terra, quando o fazes lambendo a terra, sempre visas isto: ser feliz. Ora, coisa alguma da terra te faz feliz. Por que não cessas de buscar a mentira? Como, pois, haverás de ser feliz? "O filhos dos homens, até quando sereis pesados de coração, vós que onerais com as coisas da terra o vosso coração?" 6 Até quando foram os homens pesados de coração? Foram-no antes da vinda de Cristo, antes que ressuscitasse o Cristo. Até quando tereis o coração pesado? E por que amais a vaidade e procurais a mentira? Querendo tornar-vos felizes, procurais as coisas que vos tornam míseros! Engana-vos o que desejais, é ilusão o que buscais.
Queres ser feliz? Mostro-te, se te agrada, como o serás. Continuemos ali adiante (no versículo do Salmo): "Até quando sereis pesados de coração? Por que amais a vaidade e buscais a mentira?" "Sabei" - o quê? - "que o Senhor engrandeceu o seu Santo" 7.
O Cristo veio até nossas misérias, sentiu a fome, a sede, a fadiga, dormiu, realizou coisas admiráveis, padeceu duras coisas, foi flagelado, coroado de espinhos, coberto de escarros, esbofeteado, pregado no lenho, transpassado pela lança, posto no sepulcro; mas no terceiro dia ressurgiu, acabando-se o sofrimento, morrendo a morte. Eis, tende lá os vossos olhos na ressurreição de Cristo; porque tanto quis o Pai engrandecer o seu Santo, que o ressuscitou dos mortos e lhe deu a honra de se assentar no Céu à sua direita. Mostrou-te o que deves saborear se queres ser feliz, pois aqui não o poderás ser. Nesta vida não podes ser feliz, ninguém o pode.
Boa coisa a que desejas, mas não nesta terra se encontra o que desejas. Que desejas? A vida bem-aventurada. Mas aqui não reside ela.
Se procurasses ouro num lugar onde não houvesse, alguém, sabendo da sua não existência, haveria de te dizer: "Por que estás a cavar? Que pedes à terra? Fazes uma fossa na qual hás de apenas descer, na qual nada encontrarás!"
Que responderias a tal conselheiro? "Procuro ouro". Ele te diria: "Não nego que exista o que desejas, mas não existe onde o procuras".
Assim também, quando dizes: "Quero ser feliz" . Boa coisa queres, mas aqui não se encontra. Se aqui a tivesse tido o Cristo, igualmente a teria eu. Vê o que ele encontrou nesta região da tua morte: vindo de outros paramos, que achou aqui senão o que existe em abundância? Sofrimentos, dores, morte. Comeu contigo do que havia na cela de tua miséria. Aqui bebeu vinagre, aqui teve fel. Eis o que encontrou em tua morada.
Contudo, convidou-te à sua grande mesa, à mesa do Céu, à mesa dos anjos, onde ele mesmo é o pão. Descendo até cá, e tantos males recebendo de tua cela, não só não rejeitou a tua mesa, mas prometeu-te a sua.
E que nos diz ele?
"Crede, crede que chegareis aos bens da minha mesa, pois não recusei os males da vossa".
Tirou-te o mal e não te dará o seu bem? Sim, da-lo-á. Prometeu-nos sua vida, mas é ainda mais incrível o que fez: ofereceu-nos a sua morte. Como se dissesse: "À minha mesa vos convido. Nela ninguém morre, nela está a vida verdadeiramente feliz, nela o alimento não se corrompe, mas refaz e não se acaba. Eis para onde vos convido, para a morada dos anjos, para a amizade do Pai e do Espírito Santo, para a ceia eterna, para a fraternidade comigo; enfim, a mim mesmo, à minha vida eu vos conclamo! Não quereis crer que vos darei a minha vida? Retende, como penhor a minha morte".
Agora, pois, enquanto vivemos nesta carne corruptível, morramos com Cristo pela conversão dos costumes, vivamos com Cristo pelo amor da justiça.
Não haveremos de receber a vida bem-aventurada senão quando chegarmos àquele que veio até nós, e quando começarmos a viver com aquele que por nós morreu.
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NOTAS:
1 SI 87 / 2 Rm 4,25 / 3 Cl 3,1 / 4 SI 115 / 5 SI 71,9 /
6 SI 4,3 / 7 Ibid
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FONTE:

GOMES, C. Folch Antologia dos Santos Padres. São Paulo- Ed. Paulinas 1979

terça-feira, 20 de março de 2018

42 - Atenágoras de Atenas (†180) Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 17 - 22


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42
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Atenágoras de Atenas (†180)
Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 17 - 22


Capítulo XVII  - Peço-vos considereis brevemente este ponto. (E preciso que fazendo a nossa defesa, como estou, eu apresenteargumentos mais precisos, tanto sobre os nomes, para demonstrar que são recentes, como sobre as imagens, para ver que procedem, como se diz, de ontem e anteontem; e isso vós o sabeis melhor do que ninguém, pois sois versados nos antigos a respeito de todo assunto e em grau superior a todos). Portanto, digo que Orfeu, Homero e Hesíodo são os que estabeleceramas famílias e deram os nomes aos que por eles são chamados deuses. O próprio Heródoto o confirma: “Considero Hesíodo e Homero quatrocentos anos mais antigos do que eu, não mais, e foram eles que estabeleceram a Teogonia para os gregos, que deram suas denominações aos deuses, distribuindo suas honras e ofícios e explicando suas formas.” Quanto às suas imagens, enquanto não existiam a pintura, a plástica e a escultura, não eram sequer concebíveis. Foi na época de Sáurio de Samos, de Cráton de Sicião, de Cleantes de Corinto e de uma moça coríntia que foi inventada a representação das figuras, quando Sáurio delineou um cavalo ao sol; a pintura foi quando Cráton recobriu de cor, em uma tábua branca, as figuras de um homem e de uma mulher. A fabricação de bonecos foi inventada pela moça: enamorada por um homem, delineou, enquanto dormia, a figura dele na parede; depois, o seu pai, satisfeito com a exata semelhança (sabe-se que ele trabalhava com argila), a esculpiu, enchendo o contorno de barro. A imagem ainda é conservada em Corinto. A esses sucederam Dédalo, Teodoro e Smilis, que inventaram a escultura e a plástica. Na verdade, as imagens e fabricação dos ídolos têm tão pouco tempo que é possível indicar o artífice de cada deus. Assim, foi Endoio, discípulo de Dédalo, que fabricou a estátua de Ártemis em Éfeso, a de Atenas (ou melhor, de Atela, pois assim a chamam os que falam misteriosamente… falo, portanto, da antiga estátua de oliveira), e até da Sentada; Apolo Pítio é obra de Teodoro e de Télecles; Délio e Ártemis são arte de Tecteu e de Angelião; a Hera de Argos e a de Samos saíram das mãos de Smilis; os demais ídolos são de Fídias; a segunda Afrodite é obra de Praxíteles; o Asclépio de Epidauro é obra de Fídias. Numa palavra, nenhum dos ídolos pode escapar de ser fabricado por homens. Ora, se são deuses, como não existiam desde o princípio? Como são mais recentes que aqueles que os fabricaram? Que necessidade tinham, para nascer, dos homens e da arte? Tudo isso, porém, é apenas terra, pedras, matéria e arte supérflua.

Capítulo XVIII - Há aqueles que dizem que isso são apenas estátuas, mas é aos deuses que elas se referem, que as procissões que a elas se fazem e os sacrifícios que se lhes oferecem terminam nos deuses e a eles se dirigem, que não existe, enfim, outro meio de aproximar-se dos deuses sem este: “os deuses são difíceis de aparecer claramente”. E que isso seja assim, apresentam como prova as atividades de alguns ídolos. Se vos agrada, examinemos o poder que existe em seus nomes. Antes de iniciar o meu discurso, eu vos rogo, ó máximos imperadores, que me perdoeis se apresento apenas raciocínios verdadeiros. O meu propósito não é refutar os ídolos, e sim desfazer as calúnias contra nós e oferecer-vos a razão de nossa religião. Ora, vós, por vós mesmos, poderíeis examinar o império celeste. Com efeito, como a vós, pai e filho, vos foi posto tudo na mão ao receber o império de cima: “Porque a alma do rei está nas mãos de Deus”, diz o Espírito profético, do mesmo modo está submetido a um só Deus e ao Verbo que dele procede seu filho concebido como seu inseparável. Antes de tudo, eu vos peço, portanto, que considereis este ponto. Os deuses não existiram, conforme dizem, desde um princípio, mas cada um deles nasceu do mesmo modo que nascemos. Nisso todos concordam, pois Homero diz: “Ao Oceano, origem dos deuses, e à mãe Tétis”.
Orfeu, que foi o primeiro a inventar os seus nomes e explicou suas genealogias, que contou as façanhas de cada um, e que se acredita entre o vulgo ser o mais veraz teólogo, a quem geralmente Homero segue mais do que ninguém em assunto de deuses, Orfeu, como dizia, também estabelece a primeira origem deles na água: “O Oceano, que é a origem de todos.” Com efeito, segundo ele, a água foi o princípio de tudo e da água formou-se um lodo e de ambos foi gerado um animal, um dragão que tinha unidas uma cabeça de leão e outra de touro, e entre as duas, um rosto de deus, cujo nome é Héracles e Crono. Héracles gerou um enorme ovo que, cheio da força daquele que o havia gerado, rompeu-se em dois por atrito. A parte superior transformou-se no Céu, a debaixo na Terra, e surgiu um deus de duplo corpo. O Céu, unido com a Terra, gerou as mulheres Cloto, Láquesis e Atropo, os homens centímanos: Coto, Giges, Briareu, e os ciclopes Brontes, Estetopes e Arges. Mas como ficou sabendo que seria derrubado de seu império por seus próprios filhos, acorrentou-os e atirou-os na profundeza do Tártaro. Irritada com isso, a Terra gerou os titãs: “A augusta Gaia gerou os filhos de Urano que chamam pelo sobrenome de titãs, pois eles se vingaram do grande Urano estrelado”.

Capítulo XIX - Tal é o princípio da gênese, não só daqueles que eles consideram deuses, mas do universo todo. Considerai, portanto, este ponto: cada um desses aos quais se atribui a divindade, como princípio, também é forçoso que seja corruptível. De fato, se nasceram não existindo, como dizem os que teologizam sobre eles, não existem, porque uma coisa ou é incriada e, por conclusão, eterna, ou é criada e, por conseguinte, corruptível. Não falo diferentemente dos filósofos: “O que é que é sempre e não tem princípio? O que é que começa e não é nunca? Platão, discorrendo sobre o inteligível e o sensível, ensina que aquilo que é sempre, o inteligível, é o incriado; e aquilo que não é, o sensível, criado, que começa a ser e deixa de ser. Por isso, também os estóicos dizem que tudo há de perecer numa conflagração, e voltar a ser de novo, readquirindo princípio. Ora, se, conforme eles, existem duas causas, a eficiente, que é aquela que manda, como a providência, e a passiva, que é aquela que muda, como matéria, e é impossível que, mesmo governado pela providência, o mundo permaneça em um ser, desde o momento que tem princípio, como permanecerá a constituição desses que não existem por natureza, mas que nascem? Em que são superiores à matéria deuses que têm a sua constituição a partir da água? Mas nem mesmo a água, segundo eles, é princípio de tudo. (Com efeito, o que é que poderia constituir-se de elementos simples e uniformes? Além disso, a matéria sempre necessita de artífices e o artífice necessita da matéria. De fato, como poderiam ser feitas as imagens sem matéria ou sem artífice?) Não há razão alguma para que a matéria seja mais antiga do que Deus, pois é forçoso que a causa eficiente seja anterior ao que tem princípio.

Capítulo XX - Ora, se o absurdo de sua teologia ficasse na afirmação de que os deuses nascem e se constituem da água, uma vez que demonstrei que não existe nada criado que não seja também dissolúvel, poderia passar às outras acusações que nos fazem; de uma parte, porém, descreveram os corpos dos deuses: um Héracles, o qual dizem que era um dragão retorcido; os deuses de cem mãos; a filha de Zeus, que ele teve com sua mãe Rea, também chamada Deméter, que tinha dois olhos no lugar natural e outros dois na fronte, além de chifres e a face de animal na parte posterior do pescoço, com o que, espantada com aquele monstro de filha, Rea fugiu sem dar-lhe o peito. É daí que misticamente se chama Atela, ao passo que comumente se lhe dá o nome de Perséfone e Coré, que não é a mesma que Atenas, à qual também se chama Core, por causa de sua virgindade. Por outro lado, também nos contaram suas façanhas exatamente conforme eles pensam: Cronos, que cortou o membro viril de seu pai e ele próprio o atirou de seu carro, e que matava seus filhos, devorando os varões. Zeus, que amarrou seu pai e o atirou na profundeza do Tártaro, como já fizera Urano com seus filhos, que lutou contra os titãs pela supremacia e perseguiu sua mãe Rea, que recusava unir-se com ele, convertendo-se ela em dragão, ele também em dragão e, amarrando-o com o chamado nó de Héracles, finalmente uniu-se com ela (o símbolo da figura da união é o bastão de Hermes). Depois Urano também se uniu com sua filha Perséfone, forçandoa sob a forma de dragão, e dela nasceu o filho Dioniso. Tudo isso me força a dizer o seguinte: o que há de importante ou de útil nessa história, para que acreditemos que Cronos, Zeus, Coré e os outros sejam deuses? As configurações de seus corpos? Contudo, que homem discreto e formado na contemplação filosófica pode acreditar que um deus tenha gerado uma víbora? Assim diz Orfeu: “Fanes, porém, espantosa à vista; de sua cabeça pendem os cabelos e o seu rosto é belo de se ver, mas nas partes restantes ela é dragão espantoso desde a altura do pescoço…”
Quem poderá admitir que o próprio Fanes, que é o deus primogênito (pois este é o que saiu do ovo derramado), tenha corpo ou figura de dragão ou que tenha sido devorado por Zeus, a fim de que este se tornasse imenso? Com efeito, se em nada se diferenciam dos mais vis animais (e é evidente que a divindade deve diferenciar-se de todo terreno e até daquilo que é separado da matéria), não são deuses. Por que aos que nascem com forma semelhante à dos animais, têm forma de animais e aspecto horrível?

Capítulo XXI  - Na verdade, se dissessem apenas que seus deuses são carnais, que têm sangue, esperma, paixões de ira e desejo, já seria o bastante para qualificar todos esses relatos de charlatanice e coisa ridícula; de fato, em Deus não há ira, desejo, instinto ou sêmen gerador. Podem ser de carne, mas superiores ao fastio e à colera, e não vejamos Atenas “irritada contra Zeus Pai, pois uma cólera feroz a arrebatara”, e não contemplemos Hera, a quem “a cólera não lhe cabia no peito e disse”; também superiores à tristeza: “Que dor! Estou vendo com meus olhos o homem verdadeiramente querido perseguido em torno da muralha, e meu coração se entristece”. De minha parte, considero como homens deseducados e torpes aqueles que cedem à cólera e à tristeza. Com efeito, quando o “pai de homens e deuses” se lamenta por seu filho: “Ai de mim! Pois Sarpedon, o mais querido dos homens, foi decretado pelo destino que ele seja domado por Pátroclo, filho de Menécio” e, com todos os seus lamentos, é incapaz de livrá-lo do perigo: “Sarpedon, filho de Zeus, e este nem a seu filho socorre”.
Quem não chamará de ignorantes aqueles que se mostram amadores dos deuses com tais fábulas, quando, na realidade, são ateus? Podem ser carnais, mas que Afrodite não seja ferida nem no corpo por Diomedes: “Feriu-me o filho de Tideu, o soberbo Diomedes”, nem por Ares na alma: “Por ser coxo, Afrodite, a filha de Zeus, sempre me despreza e ama o horrível Hares”. Nem Hares pelo próprio Diomedes: “E lhe arrancou a bela pele”. Ares, o espantoso nas batalhas e aliado de Zeus contra os titãs, aparece mais fraco que Diomedes: “Ia furioso, como quando Ares brande a sua lança”. Cala-te, Homero, pois Deus não se enfurece; tu és aquele que me apresentas Deus como manchado de sangue e funesto para os mortais: “Ares, Ares, destruição de mortais, manchado de sangue”, e nos contas o seu adultério e acorrentamento: “Os dois, tendo subido ao leito, adormeceram, mas ao redor deles estenderam-se as hábeis correntes do engenhoso Héfesto, e já não era possível mover os membros”.
Como não rejeitar todo esse interminável charlatanismo sobre os deuses? Urano foi castrado, Cronos foi acorrentado e jogado no Tártaro, os titãs se rebelam, Estígia morre no decorrer da batalha (até como mortais nos apresentam os deuses), uns se enamoram pelos outros e também se enamoram pelos homens: “Éneas, que foi concebido pela divina Afrodite nos braços de Asquises, nas quebradas do Ida, uma deusa deitada com um mortal”. Os deuses, porém, não amam, nem têm paixões, porque se são deuses não são afetados pelo desejo… E se Deus toma carne, segundo a divina economia, torna-se escravo do desejo?
“Com efeito, jamais o amor de deusa ou de mulher domou o meu coração dentro do peito em torno derramado, nem quando amei a esposa de Ixião; nem quando amei Dânae, a de belos tornozelos, a de Acrísio; nem quando amei a filha do ilustre Fênix, nem quando amei Sêmele ou Alcmena em Tebas, nem quando amei Deméter, a rainha de belas tranças, nem quando amei a gloriosa Seto, nem a ti mesma”. Se um ser é criado, ele é corruptível, e nada tem de Deus. E chegam a servir os homens como diaristas: “O palácios de Admeto, em que eu tive que suportar e aceitar a mesa de diarista sendo um deus.” Também são boiadeiros: “Vindo eu a esta terra, apascentei os bois de meu hóspede e salvei esta casa”. Portanto, Admeto é superior ao deus. Ó adivinho e sábio, que predizes o futuro para os outros! Tu não foste capaz de adivinhar a morte do teu amado, mas com a tua própria mão mataste o teu amigo. E Esquilo censura Apolo como falso adivinho: “Eu acreditava que a boca divina de Febo era infalível, pois dela brota a arte da adivinhação; e ele próprio, que entoava o hino, presente ao convite e que me predissera isso, foi ele que matou o meu filho”.

Capítulo XXII - Talvez se diga que tudo isso são fantasias poéticas, e que existe uma explicação física para tudo isso. Como diz Empédocles: “Esplêndido Zeus, e Hera que dá a vida, Aidoneu e Néstis, que banha de lágrimas os olhos mortais”. Contudo, se Zeus é o fogo, Hera a terra, Aidoneu o ar e Néstis a água, e tudo isso são elementos-fogo, água, ar -, nenhum deles é Deus: nem Zeus, nem Hera, nem Aidoneu, pois a constituição e origem de todos provém da matéria separada por Deus: “Fogo, água e terra, a benigna altura do ar, e a amizade entre eles”.
Aquele que não pode permanecer sem a amizade, pois está confundido pela discórdia, quem poderá dizer algo de Deus? Conforme Empédocles, a amizade é o que manda, e os compostos são o mandado, e o que manda é o principal. De modo que, se julgamos ser uma e a mesma a potência do que manda e do mandado, não nos damos conta de estar tributando honra igual à matéria corruptível do ser mutante e a Deus incriado, eterno e sempre concorde consigo mesmo.
Segundo os estóicos, Zeus é a substância fervente; Hera, que é o ar, pois o próprio nome concorda com o som, enlaça-se consigo mesmo; Posêidon é a bebida. Outros dão outras explicações naturais. Com efeito, uns dizem que Zeus é o ar de dupla natureza, hermafrodita; outros dizem que ele é a ocasião que muda o tempo em boa temperatura e que, por isso, foi o único que escapou de Cronos. Contudo, é preciso dizer contra os estóicos: se considerais o Deus dupremo como um só, incriado e eterno, e que são compostas as coisas onde se processa a mudança da matéria, e afirmais que o espírito de Deus, que penetra através da matéria, recebe um ou outro nome conforme sua mudança, então as formas da matéria se converterão em corpo de Deus e, corrompendo-se os elementos pela conflagração, forçosamente também os nomes se corromperão junto com as formas, permanecendo unicamente o espírito de Deus. Entretanto, quem é que considerará como deuses corpos corruptíveis e mutáveis conforme a matéria?
Quanto aos que dizem que Cronos é o tempo e Rea a terra; que esta concebe de Cronos e gera e que, por isso, é chamada mãe de todos; que ele gera e devora; que a mutilação de seus órgãos sexuais é a união do macho e da fêmea que corta e joga o sêmen na matriz e gera o homem que tem dentro o desejo, isto é, Afrodite; que a loucura de Cronos é o giro do tempo, consumindo o animado e o inanimado; que as correntes e o Tártaro são o tempo que muda e se torna invisível pelas estações; contra esses dizemos: se Cronos é o tempo, então muda; se é a estação, gira; se é as trevas, o gelo ou sua substância úmida, nada disso permanece; a divindade, porém, é imortal, imóvel e imutável. Portanto, nem Cronos, nem o ídolo que o representa, é deus. Quanto a Zeus, se ele é o ar gerado de Cronos”, cujo elemento masculino é Zeus e o feminino Hera (daí que ela seja sua esposa e irmã), é mutável; se ele é a estação, gira; o divino, porém, não muda, nem decai.
Contudo, para que continuar importunando-vos com novas explicações, se vós sabeis melhor as explicações que deram todos aqueles que sobre isso especularam? O que entenderam sobre os deuses aqueles que, por exemplo, escreveram sobre Atena, dizendo que ela é a inteligência que tudo penetra? Ou sobre Ísis, que chamam de natureza da eternidade, da qual todos nasceram e pela qual todos existem? Ou sobre Osíris, seu irmão, morto por Tifão, perto de Pelúsio, cujos membros ela vai buscar junto com o seu filho Horo e, tendo-os encontrado em um sepulcro,que até hoje se chama tumba de Osíris? Com efeito, resolvendo para cima e para baixo as formas da matéria, o que fazem é desviar-se de Deus, que se contempla pela razão, e divinizar os elementos e suas partes, pondo-lhes diversidade de nomes. Por exemplo: a semeadura de trigo, Osíris (do qual dizem que nos mistérios se clama a Ísis por causa do achado dos membros ou dos frutos: “Encontra mos, nos alegramos”); o fruto da vinha, Dioniso; a própria vinha Sêmele, raio, ao calor do sol. Na verdade, os que explicam alegoricamente os mitos, divinizando os ele mentos, nos dão qualquer coisa, menos explicações do divino, pois não se dão conta de que com aquilo que tentam defender seus deuses, confirmam ainda mais os raciocínios contra eles. O que é que Europa e o touro, o cisne e Leda têm a ver com a terra e o ar, para que nos venham dizer que o abominável tratamento de Zeus para com elas representa a união da terra e do ar? Desviando-se da grandeza de Deus e incapazes de remontar pelo raciocínio, pois não sentem simpatia pelo lugar celeste, se consomem e se afundam nas formas da matéria, divinizam as mudanças dos elementos, tão absurdo como alguém confundir o navio em que viaja com o piloto que o dirige. Mas como o navio nada vale, mesmo com todos os seus apetrechos, se não tem piloto, igualmente de nada vale a ordem dos elementos sem a providência de Deus. De fato, nem o navio navegará por si mesmo, nem os elementos se movimentarão sem um criador.

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segunda-feira, 12 de março de 2018

41 - Atenágoras de Atenas (†180) Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 8 -16


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41
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Atenágoras de Atenas (†180)
Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 8 -16


Capítulo VIII - Demonstração racional do monoteísmo

Que o Deus Criador de todo este universo seja um só desde o princípio, considerai-o do seguinte modo, a fim de que tenhais também o arrazoado da nossa fé: Se, desde o princípio, tivesse havido dois ou mais deuses, certamente os dois teriam tido que estar em um só e mesmo lugar ou cada um, à parte, em seu lugar. Ora, é impossível que estivessem em um só e mesmo lugar, porque, sendo deuses, não seriam iguais, mas, como incriados, seriam desiguais. De fato, o criado é semelhante a seus modelos, mas o incriado não é semelhante a nada, pois não foi feito por ninguém, nem para ninguém. Se Deus é um só, como a mão, o olho e o pé são partes completivas de um só corpo, visto que delas se completa um só; Sócrates, sim, enquanto criado e corruptível, é composto e dividido em partes. Deus, porém, é incriado, impassível e indivisível. Portanto, não é composto de partes. Contudo, se cada um deles ocupa seu próprio lugar, sendo aquele que criou o mundo mais alto que todas as coisas e estando acima do que ele fez e ordenou, onde estará o outro ou os outros? Com efeito, se o mundo, que tem forma esférica perfeita, é limitado pelos círculos do céu, o Criador desse mesmo mundo está acima de tudo o que foi criado, conservando tudo com a sua providência, que lugar resta para o outro ou outros deuses? Porque não está no mundo, já que pertence a outro; nem em torno do mundo, pois o Deus Criador do mundo está acima deste. E se não está no mundo, nem em torno do mundo (porque tudo o que rodeia este é mantido pelo Criador), onde está? Acima do mundo e de Deus, em outro mundo e em torno a outro mundo? Mas se está noutro e em torno de outro, já não está em torno de nós (pois não tem poder sobre este mundo), nem é grande em si mesmo, pois está em lugar limitado. E se não está em outro mundo, porque tudo é repleto pelo criador do mundo, nem em torno a outro, porque tudo é mantido por este, então, definitivamente, não existe, pois não existe lugar onde esteja. O que é que faz, tendo outro de quem é o mundo e estando ele acima do Criador do mundo, mas não estando nem no mundo, nem ao redor do mundo? Existe, porém, um ponto de apoio em que se apóie aquele que foi feito contra aquele que é? Acima dele, porém, está Deus e as obras de Deus. E qual será o lugar, visto que o Criador preenche o que está acima do mundo? Têm providência? Não! Não tem providência também, porque não fez nada. Por fim, se nada faz, não tem providência, nem outro lugar onde esteja, existe, desde o princípio, um único e só: o Deus Criador do mundo.

Capítulo IX  - Se nos contentássemos com esses argumentos de razão, poder-se-ia pensar que a nossa doutrina é humana. Entretanto, nossos arrazoados são confirmados pelas palavras dos profetas. Penso que vós, que sois amicíssimos do saber e instruidíssimos, não desconheceis os escritos de Moisés, nem de Isaías, Jeremias e outros profetas que, saindo de seus próprios pensamentos, por moção do Espírito divino, falaram o que neles se realizava, pois o Espírito se servia deles como flautista que sopra a flauta. Que dizem os profetas? “O Senhor é nosso Deus; não será contado nenhum outro com ele”. E ainda: “Eu sou Deus antes e depois, além de mim não há Deus.” Igualmente: “Antes de mim não existiu outro Deus, e depois de mim não existirá. Eu sou Deus e não outro além de mim.” E a respeito de sua grandeza: “O céu é o meu trono e a terra é o escabelo de meus pés. Que casa me edificarás, ou qual é o lugar do meu descanso?” Deixo para vós, inclinados sobre os livros deles, examinar mais suas profecias, a fim de que, através de um raciocínio conveniente, recuseis a calúnia contra nós.

Capítulo X - Afirmação da fé monoteísta e trinitária
Desse modo, fica suficientemente demonstrado que não somos ateus, pois admitimos um só Deus, incriado, eterno, e invisível, impassível, incompreensível e imenso, compreensível à razão só pela inteligência, rodeado de luz, beleza, espírito e poder inenarrável, pelo qual tudo foi feito através do Verbo que dele vem, e pelo qual tudo foi ordenado e se conserva. De fato, dele vem, e pelo qual tudo foi ordenado e se conserva. De fato, reconhecemos também um Filho de Deus. E que ninguém considere ridículo que, para mim, Deus tenha um Filho. Com efeito, nós não pensamos sobre Deus, e também Pai, e sobre seu Filho como fantasiam vossos poetas, mostrando-nos deuses que não são em nada melhores do que os homens, mas que o Filho de Deus é o Verbo do Pai em idéia e operação, pois conforme a ele e por seu intermédio tudo foi feito, sendo o Pai e o Filho um só. Estando o Filho no Pai e o Pai no Filho por unidade e poder do espírito, o Filho de Deus é inteligência e Verbo do Pai. Se, por causa da eminência de vossa inteligência, vos ocorre perguntar o que quer dizer “filho”, eu o direi livremente: o Filho é o primeiro broto do Pai, não como feito, pois desde o princípio Deus, que é inteligência eterna, tinha o Verbo em si mesmo; sendo eternamente racional, mas como procedendo de Deus, quando todas as coisas materiais eram natureza informe e terra inerte e estavam misturadas as coisas mais pesadas com as mais leves, para ser sobre elas idéia e operação. E o Espírito profético concorda, com o nosso raciocínio, dizendo: “O Senhor me criou como princípio de seus caminhos para suas obras”. Com efeito, dizemos que o mesmo Espírito Santo, que opera nos que falam profeticamente, é uma emanação de Deus, emanando e voltando como um raio de sol. Portanto, quem não se surpreenderá ao ouvir chamar de ateus indivíduos que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e um Espírito Santo, que mostram seu poder na unidade e sua distinção na ordem? E a nossa doutrina teológica não pára aqui, mas dizemos que existe uma multidão de anjos e ministros, aos quais Deus Criador e Artífice do mundo, por meio do Verbo que dele procede, distribuiu e ordenou, para que estivessem em torno dos elementos, dos céus, do mundo, do que há no mundo, e cuidassem de sua boa ordem.

Capítulo XI - Não vos maravilheis de que eu exponha tão detalhadamente nossa doutrina, pois todo o meu afã de exatidão se orienta a que não vos deixeis arrastar pela opinião vulgar e irracional, mas que tenhais o meio de conhecer a verdade. E assim que, pelos mesmos preceitos aos quais aderimos e que não são humanos, mas ditos por Deus e por Deus ensinados, podemos persuadir-vos de que não somos ateus. Quais são essas doutrinas com as quais nos nutrimos? “Eu vos digo: amai os vossos inimigos, bendizei aqueles que vos amaldiçoam, orai pelos que vos perseguem, para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus, que faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e chover sobre justos e injustos”. Permiti-me aqui, pois este discurso foi ouvido com grandes aplausos, que prossiga com confiança, como quem pronuncia a sua defesa diante de imperadores filósofos. Com efeito, quem, dentre os que analisam os silogismos, solucionam os equívocos, esclarecem as etimologias, ou que ensinam os homônimos e sinônimos, os categoremas, os axiomas, o que é o sujeito e o que é predicado; quais desses prometem fazer felizes os seus discípulos por essas ou semelhantes doutrinas? Quais desses têm almas tão purificadas que amem os seus inimigos ao invés de odiá-los, e abençoem a quem primeiro os amaldiçoou - coisa naturalíssima -, e roguem contra aqueles que atentam contra a sua própria vida? Ao contrário, eles passam a vida aprofundando com má intenção seus próprios mistérios, estão sempre desejando fazer algum mal, pois professam não uma demonstração de obras, mas uma arte de palavras. Entre nós, porém, é fácil falar a pessoas simples, artesãos e velhinhas que, se não são capazes de manifestar a utilidade da sua religião, a demonstram pela prática. Com efeito, não aprendem discursos de cor, e sim manifestam boas ações: não ferir a quem os fere, não perseguir na justiça a quem os despoja, dar a todo aquele que lhes pede e amar ao próximo como a si mesmos.

Capítulo XII  - Ora, se não acreditássemos que Deus preside ao gênero humano, poderíamos levar uma vida tão pura? Não é possível dizer. Mas como estamos persuadidos de que teremos de dar contas de toda a nossa vida presente a Deus, que fez a nós e ao mundo, escolhemos a vida moderada, caritativa e desprezada, pois pensamos que não podemos sofrer mal tão grande aqui, mesmo quando nos tirem a vida e qual será a recompensa que receberemos lá do grande juiz por uma vida mansa, caritativa e modesta. Platão disse que Minos e Radamante julgariam e castigariam os maus. Nós, porém, dizemos que nem o próprio Minos ou Radamante ou o pai deles escapará do julgamento de Deus. Além disso, homens que consideram essa vida como “comamos e bebamos, porque amanhã morreremos” e fazem da morte um sono profundo e puro esquecimento - “a morte e o sono, irmãos gêmeos” - são considerados piedosos. Nós, porém, homens que consideramos a vida presente de curta duração e de mínima estima, que nos dirigimos pelo único desejo de conhecer o Deus verdadeiro e o Verbo que dele procede - qual é a comunicação do Pai com o Filho, que coisa é o Espírito, qual é a união de tão grandes realidades, qual a distinção dos assim unidos, do Espírito, do Filho e do Pai-;nós que sabemos que a vida que esperamos é superior a tudo quanto a palavra pode expressar, se chegarmos até ela puros de toda iniqüidade; nós que vivemos a nossa caridade até amar não só os nossos amigos, como diz a Escritura: “Se amais os que vos amam e emprestais aos que vos emprestam, que recompensa tereis?”, a nós que somos tais e vivemos tal vida para fugirmos de ser julgados, não somos considerados religiosos?
Tudo isso são pequenas amostras de grandes coisas, poucas entre muitas, a fim de não vos molestarmos com a prolixidade. Com efeito, os que provam o mel ou o soro, através de uma pequena quantia, examinam se o todo é bom.

Capítulo XIII  - Contudo, já que aqueles que nos acusam de ateísmo - vulgo que não sabe sequer em sonho que é Deus, tão ignorantes e alheios que são à contemplação tanto da razão teológica como da física, que medem a religião por lei de sacrifícios - nos reprovam por não termos os mesmos deuses que as cidades, considerai, vos peço, ó imperadores, um e outro ponto do modo que segue, e, antes de tudo, a reprovação por não sacrificar. O Artífice e Pai deste universo não tem necessidade nem de sangue nem de gordura, nem de perfume de flores e incensos, já que ele é o perfume perfeito; nada lhe falta, e de nada necessita. Para ele o máximo sacrifício é que reconheçamos quem estendeu e deu força esférica aos céus e assentou a terra como centro, que reuniu as águas em mares e separou a luz das trevas, quem adornou o éter com astros e fez que a terra produzisse sementes, quem criou os animais e plasmou o homem. Considerando, pois, Deus como artífice que contém tudo e que olha tudo com a ciência e a arte com que dirige tudo, e levantando as nossas mãos puras para ele, que necessidade há de catástrofes?
“Os homens tratam de dobrá-los com sacrifícios e suaves súplicas, com libação e gordura, suplicando-lhes quando alguém comete transgressão e pecado”. Que falta me fazem os holocaustos de que Deus não necessita? E que falta me faz apresentar oferendas, quando se deve ofere cer-lhe sacrifícios incruentos, que é culto racional?

Capítulo XIV - Sobre o fato de não nos aproximarmos ou termos como deuses os mesmos que as cidades têm, é palavra totalmente idiota; mas nem aqueles que nos acusam de ateísmo por não considerarmos como deuses aqueles aos quais de modo vão se aproximam, concordam entre si a respeito dos deuses. Os atenienses estabelecem como deuses Celeu e Metanira; os lacedemônios estabelecem Menelau, e a ele sacrificam e celebram festas; os troianos, que não podem sequer ouvir seu nome, estabelecem Heitor; os habitantes de Queos estabelecem Aristeu, que identificam com Zeus e Apolo; os tássios estabelecem Teágenes, que cometeu homicídio nos jogos olímpicos; os habitantes de Samos estabelecem Lisandro, depois de tantas mortes e tantos males; os cilícios consideram Medéia e Níobe; os sículos consideram Filipe, filho de Butacides; os amatúsios consideram Onesilau; os cartagineses consideram Amílcar. O dia acabaria se eu tivesse que enumerar toda a multidão. Se eles entre si não estão de acordo sobre seus próprios deuses, por que nos acusam de não coincidir com eles? Quanto aos egípcios, a coisa chega ao ridículo. Em suas grandes reuniões, eles batem no peito nos templos, como pelos mortos, e lhes oferecem sacrifícios como a deuses; e ninguém estranha que introduzam animais como deuses, raspem a cabeça quando morrem, os enterrem nos templos e organizem lutos públicos. Se nós, portanto, por não praticar a religião como eles, somos ímpios, todas as cidades e todas as nações são ímpias, pois não são todos que têm os mesmos deuses.

Capítulo XV  - Aceitemos, porém, que todos admitissem os mesmos deuses. E daí? Se o vulgo, incapaz de distinguir entre matéria e Deus, e de compreender a diferença que existe de uma para outro, recorre aos ídolos feitos de matéria, deveremos também nós adorar as estátuas para agradá-los? Nós, que distinguimos e separamos o incriado do criado, o ser do não-ser, o inteligível do sensível, e que damos nome conveniente a cada uma dessas coisas? Com efeito, se a matéria e Deus são a mesma coisa, e se trata apenas de dois nomes para a mesma realidade, não aceitando como deuses as pedras, a madeira, o ouro e a prata, cometemos uma impiedade; contudo, se existe imensa distância entre um e outro, como do artista para os instrumentos de sua arte, por que nos acusam? Como o oleiro e o barro, o barro é a matéria e o oleiro é o artista, assim Deus é o artífice, e a matéria lhe obedece em vista da arte. Mas como o barro sem a ação do artista não pode por si mesmo converter-se em vasos, também a matéria, capaz de qualquer forma, não teria recebido em distinção nem figura nem ornato sem a ação do Deus artífice. Ora, nós não consideramos o vaso mais digno de honra do que o seu fabricante, nem as taças de ouro mais dignas de honra do que aquele que as fundiu, mas, se vemos nelas alguma habilidade artística, louvamos o artista e é este que colhe o fruto da glória dos vasos. Do mesmo modo, tratando-se de Deus e da matéria, não é esta que recebe a glória e a justa honra pela ordenação do mundo, mas Deus, artífice da matéria. Assim, se considerássemos como deuses as formas da matéria, daríamos prova de não ter o sentido do Deus verdadeiro, equiparando o dissolúvel e corruptível ao eterno.

Capítulo XVI  - Certamente o mundo é belo, abarca tudo com a sua grandeza, pela disposição dos astros da ecléptica e os do setentrião, e por sua forma esférica; contudo, não é a ele, mas ao seu artífice que se deve adorar. Com efeito, nem mesmo vossos súditos que recorrem a vós, seus donos e senhores, dos quais podem conseguir o que necessitam, vos deixam de honrar para deter-se na magnificência de vossa moradia; de passagem, eles olham vosso palácio imperial e admiram sua bela feitura; contudo, a glória e a honra eles as tributam inteiramente a vós. E de se notar que vós, os reis, construís para vós mesmos vossas régias moradas; o mundo, porém, não foi feito porque Deus necessitasse dele, pois Deus é tudo para si mesmo, luz inacessível, mundo perfeito, espírito, poder, verbo. Portanto, se o mundo é um instrumento harmonioso que se move conforme um ritmo, eu não adoro o instrumento, mas a quem lhe dá harmonia, o faz emitir os sons e entoa o canto afinado. Nem mesmo nos jogos públicos os atletas deixam de lado os tocadores de cítaras e coroam as cítaras deles. Se o mundo é, como diz Platão, uma obra de Deus, admirando sua beleza, eu me dirijo ao artista. Se é essência e corpo, como querem os peripatéticos, não vamos deixar de adorar a Deus, causa do movimento desse corpo, para cair nos elementos míseros e fracos, preferindo em nossas adorações a matéria passível ao éter que, segundo eles, é impassível. E se existe quem entende as partes do mundo como potências de Deus, não vamos prestar honras às potências, mas ao criador e dono delas. Não peço à matéria o que ela não tem, nem abandono a Deus para servir aos elementos, que podem apenas aquilo que lhes é ordenado. Se é certo que são formosas à vista por perícia do artífice, nem por isso deixam de ser perecíveis por natureza da matéria. O próprio Platão confirma meu raciocínio. Ele diz: “O que chamamos céu e mundo, embora participe de muitos e afortunados bens da parte do Pai, contudo, também tem a comunicação do corpo e, por isso, é impossível que esteja isento de toda mudança”. Se, embora admirando o céu e os elementos por causa da arte que neles resplandece, não os adoro como a deuses, pois conheço a razão de dissolução que pesa sobre eles, como chamarei deuses aos que eu sei que têm homens como artífices?

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segunda-feira, 5 de março de 2018

40 - Atenágoras de Atenas (133-180) - Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 1 - 7


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40
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Atenágoras de Atenas (133-180)
Apelo a favor dos Cristãos – Capítulos 1 - 7



Atenágoras de Atenas, viveu nos fins do século II d.C. 
Apologista cristão, que aparentemente nasceu e viveu em Atenas. Apresentou uma apologia em prol do  cristianismo  ao  imperador Marco Aurélio.
Ali ele defende o cristianismo e suas práticas, e ataca as religiões pagãs, sobre tudo quanto ao seu politeísmo.
Descobriu noções monoteístas em diversos poetas e filósofos gregos e nisso, apresentou um argumento a priori, em favor da existência de Deus. Tratando sobre a ressurreição dos mortos, ele combinou ideias religiosas e filosóficas. Naturalmente, Platão o influenciou fortemente, pelo que sua fé religiosa geralmente foi apropriada de falar a não-cristãos, que sabiam algo das ideias de Platão e apreciavam a grandeza de seus conceitos.
Deste apologista cristão sabe-se tão – somente que era de Atenas e filósofo. Nem Eusébio de Cesaréia, nem Jerônimo o menciona. Dele se encontra uma menção no tratado Sobre a ressurreição 1,37,1, de Metódio de Olimpo (sécs. III-IV).
Traços de sua vida e de suas obras desapareceram completamente da literatura cristã até que o bispo Aretas de Cesaréia manda copiar, em 914, para o seu Corpus apologetarum, Apologia e o tratado Sobre a ressurreição dos mortos de Atenágoras.
O local de seu nascimento, sua formação intelectual, suas origens, local e data de sua morte nos escapam. Suas obras, contudo, revelam uma pessoa de boa cultura, alguém que frequentou cursos de retórica.
Seu estilo é moderado, bem mais sóbrio que o de Taciano, mais ordenado que o de Justino. Como Justino, é simpático à filosofia e à cultura gregas.
Se a tradição que faz de Atenágoras um ateniense é verdade, sem dúvida há uma relação entre sua origem e o meio em que se formou, e sua cultura mais afinada que a dos escritores cristãos anteriores.



Obras:
Legatio pro Cristianis (Apelo em favor dos Cristãos).
De Resurrectione (Sobre a Ressurreição).

Obra: Apelo em Favor dos Cristãos

Capítulo I - Introdução e Dedicatória
Aos imperadores Marco Aurélio Antonino e Lúcio Aurélio Cômodo, armênicos, somáticos e, o que é o máximo título, filósofos.
Em vosso império, ó grandes entre os reis, certas pessoas usam alguns costumes e leis, e outras seguem outros, e a ninguém é proibido, nem por lei nem por medo de castigo, amar suas tradições pátrias, por mais ridículas que sejam. Desse modo, o troiano chama deus a Heitor e adora Helena, crendo que ela é Adrastéia; o lacedemônio cultua Agamenon como se fosse Zeus, Filonoe, filha de o Tindáreo, como se fosse Enódia; o ateniense sacrifica a Ereteu Posêidon, e os atenienses celebram iniciações e mistérios a Agraulo e Pandroso, iniciações que foram consideradas sacrílegas por terem aberto a caixa. Numa palavra, os homens, conforme as nações e os povos, oferecem os sacrifícios e celebram os mistérios à vontade. Quanto aos egípcios, têm como deuses os gatos, crocodilos, serpentes, víboras e cães. Vós e vossas leis tolerais tudo isso, pois considerais ímpio e sacrílego não crer de modo algum em Deus. É necessário que cada um tenha os deuses que quiser a fim de que, por temor à divindade, se abstenha de cometer impiedades. A nós, porém, embora não vos ofendais, como o vulgo, já ficamos sendo odiados, só em ouvir o nome visto que não são os homens que merecem o ódio, mas a injustiça, que merece pena e castigo. Daí que admirando a vossa suavidade e mansidão, o vosso amor à paz e a toda humanidade, as pessoas particulares são regidas por leis iguais, e as cidades, segundo a sua dignidade, participam também de igual honra, e a terra inteira goza, graças à vossa inteligência, de profunda paz. Quanto a nós, que somos chamados cristãos, não tendo providência por nós, permitis que, sem cometer nenhuma injustiça, mas pelo contrário, como a continuação do nosso discurso demonstrará, comportando-nos de modo mais piedoso e justo do que ninguém, não só diante da divindade, mas também em relação ao vosso império, permitis que sejamos acusados, maltratados e perseguidos, sem outro motivo para que o vulgo nos combata, a não ser apenas o nosso nome. Todavia, nós nos atrevemos a vos manifestar a nossa vida e doutrina, e com o nosso discurso compreendereis que sofremos sem causa e contra toda lei e razão, e vos suplicamos que também a nós deis alguma atenção, para que cesse, finalmente, a degolação a que nos submetem os caluniadores. Com efeito, não é perda de dinheiro que nos vem de nossos perseguidores, não é desonra no desfrutar de nossos direitos de cidadania, não é o prejuízo em alguma das outras coisas menores. Nós desprezamos tudo isso, por mais importante que pareça ao vulgo. Nós aprendemos não só a não ferir aquele que nos fere, mas também a não perseguir na justiça aqueles que nos roubam e saqueiam; mais ainda, àquele que nos dá uma bofetada numa face, devemos oferecer-lhe a outra, e a quem nos tira a túnica, devemos dar-lhe também o manto. Já que renunciamos às riquezas, o que eles atentam é contra os nossos corpos e as nossas almas, espalhando incontáveis acusações, que nem por suspeita tocam a nós; tocam sim aos que as propagam e aos de sua laia.

Capítulo II -
Se alguém é capaz de nos convencer de termos cometido uma injustiça, pequena ou grande, não fugiremos do castigo, mas pedimos antes que se nos inflija o que for mais áspero e cruel. Mas se a nossa acusação é tão somente o nome - e pelo menos até hoje o que propalam sobre nós é apenas vulgar e estúpido rumor das gentes, e não foi provado que algum cristão tenha cometido um crime - a vossa questão é, como imperadores máximos, humaníssimos e amicíssimos do saber, rejeitar por lei a calúnia feita contra nós, a fim de que, assim como toda a terra, pessoas particulares e cidades gozam de vosso benefício, também nós vos possamos agradecer, glorifi­cando-vos por termos deixado de ser caluniados. Com efeito, a vossa justiça não diz que, quando se acusa a outros, não se pode condená-los antes de tê-los interroga­ do? Quanto a nós, porém, vale mais o nome do que as provas do julgamento, pois os juízes não buscam averi­guar se o acusado cometeu algum crime, mas tratam-no com insolência por causa do nome, como se fosse crime. Entretanto, em si e por si, um nome não pode ser conside­rado bom ou mau, e sim que pareça bom ou mau conforme sejam boas ou más as ações que ele supõe. Sabeis disso melhor do que ninguém, pois sois formados na filosofia e em toda a cultura. Por isso, mesmo os que são julgados diante de vós, embora sejam acusados dos maiores crimes, estão confiantes e, sabendo que examinais sua vida e não atacais os seus nomes, se são vazios, nem atendeis às acusações, se são falsas, recebem com o mesmo espírito tanto a sentença de absolvição como a de condenação.
Também nós reclamamos o direito comum, isto é, que não sejamos odiados e castigados por termos o nome de cris­ tãos. Definitivamente, o que o nome tem a ver com a maldade? Reclamamos que cada um seja julgado por aquilo de que foi acusado, e nos absolvam, se desfizermos as acusações, ou nos castiguem se somos réus de maldade. Que não sejamos julgados pelo nome, mas pelo crime, pois nenhum cristão é mau, a não ser que professe fingidamente o cristianismo. Assim vemos que se procede com os filósofos. Nenhum deles, antes do julgamento, pelo simples fato de sua ciência ou profissão, é considerado pelo juíz como bom ou mau; pelo contrário, se é julgado injusto, é castigado, sem que por isso se faça qualquer acusação à filosofia, pois o mau é aquele que não a professa como é de lei; mas a ciência não tem culpa; e se ele se defende das acusações, então é absolvido. Proceda-se de modo igual conosco. Examine-se a vida dos que são acusados e deixese o nome livre de qualquer acusação.
Parece-me necessário, ó máximos imperadores, rogar-vos que, ao começar a defesa da nossa doutrina, vos mostreis ouvintes equânimes e não vos deixeis levar por algum preconceito, arrastados pelos rumores vulgares e irracionais, mas que também apliqueis à nossa doutrina o vosso amor ao saber e à verdade. Desse modo não pecareis por ignorância, e nós, livres das estúpidas intrigas do vulgo, deixaremos de ser combatidos.

Capítulo III -
São três as acusações que se propagam contra nós: o ateísmo, os convites de Tiestes, e as uniões edípicas. Se isso é verdade, não perdoeis a classe alguma. Castigai esses crimes, matai-nos pela raiz com nossas mulheres e filhos, se é que existe entre os homens alguém que viva como ós animais. Até os animais não atacam os de sua espécie, unem-se entre si por lei de natureza, e apenas no tempo da procriação, e não por dissolução e, finalmente, conhecem quem lhes faz benefício. Se alguém, portanto, é mais feroz do que as próprias feras, que castigo corresponderá a tantos crimes? Mas se isso é pura intriga e calúnias vazias, é de razão natural que a maldade se oponha à virtude e de lei divina que os contrários lutem entre si, e vós sois testemunhas de que nós não cometemos nenhum desses crimes, mandando que não confessássemos, a vós cabe agora fazer uma investigação sobre a nossa vida e doutrinas, sobre a nossa lealdade e obediência à vossa casa e império e, por fim, conceder-nos o mesmo que àqueles que nos perseguem. Nós os venceremos, pois estamos dispostos a dar intrepidamente até as nossas vidas pela verdade.

1ª PARTE: REFUTAÇÃO DAS ACUSAÇÕES DE ATEÍSMO E AFIRMAÇÃO DO MONOTEÍSMO

Capítulo IV - Deus segundo os filósofos
Refutarei agora cada uma das acusações. Que não sejamos ateus, temo até chegar ao ridículo deter-me para contestar àqueles que dizem tal coisa. Diágoras sim, era com razão reprovado pelos atenienses por causa do seu ateísmo. Com efeito, ele não só expunha publicamente a doutrina órfica e divulgava os mistérios de Elêusis e os dos Cabiros, e quebrava a estátua de Herácles para com os pedaços cozer os seus nabos, mas também diretamente afirmava que Deus não existe em absoluto. Nós, porém, distinguimos Deus da matéria e demonstramos que uma coisa é Deus e outra a matéria, e que a diferença entre um e outro é imensa, pois a divindade é incriada e eterna, contemplável apenas pela inteligência e pela razão, mas a matéria é criada e corruptível. Não é irracional chamar-nos de ateus? Com efeito, se pensássemos como Diágoras, tendo tantos argumentos para a crença em Deus - a ordem, a harmonia universal, a grandeza, a cor, a figura, a disposição do mundo -, então sim teríamos com razão a fama de ím-pios e haveria motivo para sermos perseguidos. Mas a nossa doutrina admite um só Deus, criador de todo este mundo, e ele não foi criado - pois não se cria o que existe, mas o que não existe -, e sim ele é criador de todas as coisas por meio do Verbo que dele procede. Portanto, sofremos ambas as coisas sem motivo, a má fama e a perseguição.

Capítulo V
A ninguém pareceu que os poetas e filósofos eram ateus, porque especularam sobre Deus. Assim Eurípides, duvidando completamente sobre aqueles que a preocupação comum chama falsamente de deuses, disse: “Se é que Zeus está no céu, não deveria torná-lo desgraçado”. Mas, dando a sua opinião sobre aquele que é cognoscível por ciência, diz: “Vês na altura este éter imenso e que mantém a terra ao redor em seus braços úmidos? Crê que este é Zeus; tem a este como Deus”.
Com efeito, não via daqueles nem as essências que subsistiriam sob o nome que se lhes atribui - “Porque Zeus, seja Zeus quem for, dele sei apenas o nome” - nem que os nomes fossem atribuídos a coisas subsistentes. Ora, onde não há essências subsistentes, que valor têm os nomes? Este, porém, era visto pelas obras, entendendo que o aparente é manifestação do oculto. Assim, portanto, aquele cujas obras via e cujo espírito segura as rédeas de tudo, esse ele compreendeu como Deus. E com ele concorda Sófocles: “Um, em verdade, um só é Deus, que fabricou o céu e a vasta terra”. Com isso ele ensina sobre a natureza de Deus, que enche o universo com a sua beleza, e não só onde deve estar Deus, mas também que deve ser necessariamente uno.

Capítulo VI
Também Filolao, ao afirmar que Deus fechou tudo como em uma prisão, demonstra que Deus é uno e que está acima da matéria. Quanto a Lisis e Opsimo, um defende a Deus como o número inefável, o outro como a diferença entre o número máximo e seu contíguo. Ora, conforme os pitagóricos, o número máximo é o dez, pois é tetractys ou quaternário e compreende todas as proporções aritméticas e harmônicas, e o contíguo a este é o nove. Portanto, Deus é a mônada, isto é, uno, pois supera por um o maior em relação ao seu contíguo inferior.
Platão e Aristóteles - aviso, antes de tudo, que não tenho a intenção de expor com absoluto rigor as doutrinas dos filósofos, ao citar o que disseram a respeito de Deus; com efeito, sei o quanto superais a todos por vossa inteli gência e o poder de vosso império, também sais versados em cada uma das partes da ciência, como não o são nem os que se reservaram uma só delas; todavia, como, sem citar nomes, era impossível demonstrar que não somos apenas nós que encerramos Deus na mônada, recorri aos florilégios ou coleções de sentenças. Platão, portanto, diz o seguinte: “Ao Criador e Pai de todo o universo não só é difícil encontrá-lo, mas, uma vez encontrado, é difícil manifestá-lo a todos”, dando a entender que o Deus incriado e eterno é um. É certo que ele conhece outros, como o sol, a lua e as estrelas, mas conhece-os como seres criados: deuses de deuses, de que eu sou o artífice, e pai de obras que, se eu não quiser, não são desatáveis, pois tudo o que é atado é desatável”. Portanto, se Platão não é ateu, por entender que o artífice do universo é um só Deus incriado, muito menos o somos nós, por saber e afirmar o Deus, por cujo Verbo tudo foi fabricado e por cujo Espírito tudo é mantido. Aristóteles e sua escola, que introduzem um só Deus como uma espécie de animal composto, dizem que Deus é composto de alma e corpo e consideram como seu corpo o éter, as estrelas errantes e a esfera das estrelas fixas, tudo movido circularmente; e consideram a alma como a inteligência que dirige o movimento do corpo, sem que ela própria se mova, sendo ela, em troca, a causa do movimento. Quanto aos estóicos, embora nos nomes multipliquem o divino nas denominações que lhe dão, conforme as mudanças da matéria, na realidade conside ram Deus como uno. Com efeito, se Deus é o fogo artificio so, que marcha por um caminho para a geração do mundo e compreende em si todas as razões seminais, segundo as quais tudo se produz conforme o destino, e se o espírito de Deus penetra o mundo inteiro, Deus é uno, segundo eles; e chama-se Zeus, se olha o fervor da matéria; ou Hera, se o ar; e daí por diante, conforme cada parte de matéria, por onde penetra abrir para outros nomes que apontam.

Capítulo VII
De qualquer forma, tratando dos princípios do universo, todos geralmente, até contra a sua vontade, estão de acordo em que o divino é uno, e nós afirmamos que quem ordenou todo o universo, esse é Deus. Portanto, qual é o motivo pelo qual se permite que uns possam dizer e escrever livremente sobre Deus, conforme queiram, e, por outro lado, haja uma lei estabelecida contra nós, justamente nós, que podemos estabelecer por sinais e razões de verdade o que entendemos e retamente cremos, isto é, que Deus é uno? Com efeito, os poetas e filósofos, aqui como em outros lugares, procederam por conjecturas, movidos conforme a simpatia do sopro de Deus, cada um por sua própria alma, a buscar se era possível encontrar e compreender a verdade. E só conseguiram entender, mas não encontrar o ser, pois não se dignaram aprender de Deus sobre Deus, mas cada um de si mesmo. Então, cada um dogmatizou a seu modo, não só a respeito de Deus, mas sobre a matéria, as formas e o mundo. Nós, porém, sobre o que entendemos e cremos, temos como testemunhas os profetas que, movidos pelo Espírito divino, falaram sobre Deus e as coisas de Deus. Ora, vós mesmos, que por vossa inteligência e vossa pie-dade em relação ao verdadeiramente divino ultrapassais a todos, direis que é irracional aderir a opiniões humanas, abandonando a fé no Espírito de Deus, que moveu, como seus instrumentos, as bocas dos profetas.

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