quinta-feira, 11 de agosto de 2016

45 - História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia - Livro VII – Capítulos 24 e 25.

Livro VII
45
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VII – Capítulos 24 e 25


XXIV - De Népos e seu cisma
1. Além de tudo isto, escreveu também os dois livros Sobre as promessas, cujo tema era Népos, bispo dos do Egito, que ensinava que as promessas feitas aos santos nas divinas Escrituras devem ser interpretadas mais ao modo judeu, e supunha que haveria um milênio de delícias corpóreas sobre esta terra seca.
2.            Em todo caso, acreditando reforçar sua própria suposição com o Apocalipse de João, compôs sobre ele uma obra que intitulou Refutação dos alegoristas.
3.            Contra esta obra ergue-se Dionísio em seus livros Sobre as promessas. No primeiro expõe seu próprio pensamento sobre a doutrina, e no segundo discute acerca do Apocalipse de João. Nele faz menção a Népos no começo, e escreve o seguinte sobre ele:
4.     "Mas como quer que aleguem certo livro de Népos no qual se apóiam mais do que deveriam, como se demonstrasse irrefutavelmente que o reinado de Cristo será sobre a terra, em muitas outras coisas aprovo Népos e o amo: por sua fé, por sua laboriosidade, por seu estudo sério das Escrituras e por sua numerosa produção de hinos, com os quais muitos irmãos vêm se reconfortando até hoje, e meu respeito pelo homem é absoluto, ainda mais estando já morto. Porém, como a verdade me é mais querida e mais estimada do que todas as coisas, deve-se louvá-lo e estar de acordo com ele, sem reservas, se diz algo retamente, mas também, se em algo não parece correto o que escreveu, deve-se examiná-lo e corrigi-lo.
5.            Para com alguém que está presente e que se explica por palavra, poderia ser suficiente uma conversação oral, que a base de perguntas e respostas vai persuadindo e reduzindo os contendores; mas havendo no meio um escrito, e muito persuasivo segundo alguns, e contando de outra parte com alguns mestres que, em nada estimando a Lei e os Profetas, deixando de seguir os Evangelhos e desprezando as Cartas dos apóstolos, proclamam sem mais o ensinamento deste livro como um grande e oculto mistério, e não permitem a nossos irmãos mais simples ter pensamentos elevados e magníficos sobre a manifestação gloriosa e realmente divina de nosso Senhor, nem de nossa ressurreição dentre os mortos nem de nossa reunião e configuração com Ele, mas os persuadem a esperar coisas mínimas e mortais, como são as presentes, no reino de Deus, é necessário que também nós discutamos com nosso irmão Népos como se estivesse presente."
6.   Ao dito acrescenta, depois de outras coisas, o seguinte:
"Assim pois, achando-me em Arsinoé, onde, como sabes, há muito prevalece esta doutrina, até o ponto de que ocorreram cismas e apostasias de igrejas inteiras, convoquei os presbíteros e mestres dos irmãos das aldeias, e estando presentes também os irmãos que queriam, exortei-os a realizar em público o exame da doutrina.
7.             Ao me apresentarem este livro como arma e muro inatacável, estive com eles três dias em sessão contínua, da aurora ao anoitecer, tentando emendar o que estava escrito.
8.      Pude então admirar sobremaneira o equilíbrio, o amor à verdade, a facili­dade de compreensão e a inteligência dos irmãos quando, por ordem e com moderação, desenvolvíamos as perguntas, as objeções e os pontos de coincidência; por um lado, tínhamos nos recusado a nos aterrarmos obstinada e insistentemente às decisões tomadas uma só vez, ainda que isto não nos parecesse justo; e por outro, também não evitávamos as objeções, mas na medida do possível tentávamos abordar os temas propostos e dominá-los; e tampouco nos envergonhávamos de mudar de idéia e concordar se a razão o exigisse, antes, com a melhor consciência, sem disfarces e com o coração aberto a Deus, aceitávamos o que ficasse estabelecido pelas argumentações e pelos ensinamentos das Santas Escrituras.
9.      E por último, o líder e introdutor desta doutrina, o chamado Coracion, con­fessou e atestou para que todos os irmãos presentes ouvissem que não mais se entregaria a isto, nem discutiria sobre isto, nem o recordaria nem ensinaria, pois estava suficientemente convencido pelos argumentos opostos. E dos outros irmãos, uns se alegravam do colóquio, assim como da condescen­dência e disposição comum para com todos..."

XXV - Sobre o Apocalipse de João
1.   Logo continuando, pouco mais abaixo, diz o seguinte sobre o Apocalipse de João:
"Assim pois, alguns dos nossos antecessores rechaçaram como espúrio e desacreditaram por completo o livro, examinando capítulo por capítulo e declarando que era ininteligível e ilógico, e seu título enganoso.
2.            Dizem mesmo que não é de João e que tampouco é Apocalipse[1], estando como está bem velado com o grosso manto da ignorância, e que o autor deste escrito não só não foi nenhum dos apóstolos, mas que nem sequer nenhum santo ou membro da Igreja em absoluto, mas Cerinto[2], o mesmo que instituiu a heresia cerintiana e que quis dar credibilidade a sua própria invenção com um nome digno de fé.
3.     Na verdade, a doutrina que ele ensina é esta: o reino de Cristo será terreno; e como ele era um amante de seu corpo e inteiramente carnal, sonhava que consistiria no mesmo que ele desejava: fartura do ventre e do que está abaixo do ventre, ou seja: de comidas, de bebidas, de uniões carnais e de tudo aquilo com que lhe parecia que se procurariam estas coisas de uma forma mais bem sonante: festas, sacrifícios e imolação de vítimas.
4.     Eu, de minha parte, não poderia me atrever a rechaçar o livro, pois são mui­tos os irmãos que o tomam a sério, mas ainda admitindo que o pensamento que encerra excede minha própria inteligência, suponho que o sentido de cada passagem está em certo modo encoberto e é bastante admirável, porque, mesmo que não o compreenda, ainda assim suspeito ao menos que nas palavras se encerra alguma intenção mais profunda.
5.            Não meço isto nem o julgo com minha própria razão, mas, ainda outorgando a superioridade à fé, cheguei à conclusão de que isto está demasiado alto para ser concebido por mim. E eu não reprovo o que não compreendi, antes até o admiro mais, porque nem sequer o vi."
6.     Depois disto e depois de examinar todo o livro do Apocalipse e demonstrar que é impossível entendê-lo segundo seu sentido óbvio, continua dizendo: "Depois de concluir toda sua - por assim dizer - profecia, o profeta declara bem-aventurados os que a guardam e também, é verdade, a si mesmo: Bem-aventurado - diz, efetivamente - o que guarda as palavras da profecia deste livro, e eu, João, que estou vendo e escutando estas coisas[3].
7.     Portanto, não contradirei que ele se chamava João e que este livro é de João. Porque inclusive estou de acordo de que é obra de um homem santo e inspirado por Deus. Mas eu não poderia concordar facilmente em que este fosse o apóstolo, o filho de Zebedeu e irmão de Tiago, de quem é o Evangelho intitulado de João e a Carta católica.
8.            De fato, pelo caráter de um e de outro, pelo estilo e pela chamada disposi­ção geral do livro, conjeturo que não é o mesmo, já que o evangelista em nenhuma parte escreve seu nome nem prega a si mesmo: nem no Evangelho nem na Carta."
9.            Logo, um pouco mais abaixo, outra vez diz assim:
"Mas João de nenhuma maneira, nem em primeira nem em terceira pessoa. Porém, o que escreveu o Apocalipse, imediatamente se põe adiante, já no começo: Revelação de Jesus Cristo, que foi dada para mostrar prontamente a seus servos, e que foi revelada enviada por meio de seu anjo a seu servo João, o qual deu testemunho da palavra de Deus e de seu testemunho: tudo o que viu[4].
10. Logo escreve também uma carta: João às sete igrejas que estão na Ásia. Graça e paz a vós outros[5]. Mas o evangelista nem no cabeçalho de sua Carta católica escreveu seu nome, mas começou sem mais pelo próprio mistério da revelação divina: O que era desde o princípio, o que temos ouvido, que vimos com nossos próprios olhos[6]. Por motivo desta revela­ção, efetivamente, o Senhor chamou bem-aventurado a Pedro quando disse:
Bem-aventurado és, Simão, filho de Jonas, pois nem a carne nem o sangue to revelaram, mas meu Pai celestial[7].
11. Mas ocorre que nem na segunda nem na terceira Carta que se consideram de João, ainda que breves, aparece João por seu nome, mas de uma forma anônima achamos escrito: o presbítero[8]. Por outro lado, este outro não achou suficiente nomear-se uma vez só e seguir a explicação, mas repete novamente: Eu, João, vosso irmão e co-partícipe na tribulação, no reino e na paciência de Jesus, estive na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus[9]. E ainda, mesmo perto do final, diz o seguinte: bem-aventurado o que guarda as palavras da profecia deste livro, e eu, João, o que está vendo e ouvindo estas coisas[10].
12. Portanto, que é João que escreve isto, temos que crê-lo pois ele o diz; mas não está claro quem seja este, pois não diz, como em muitas passagens do Evangelho, que ele é o discípulo amado pelo Senhor, o que se reclinou sobre seu peito, o irmão de Tiago, a testemunha ocular e ouvinte direto do Senhor.
13. Porque teria dito algo do que acabamos de indicar se quisesse dar-se a conhecer claramente. E mesmo assim, nada disto, antes se disse irmão e companheiro nosso, testemunha de Jesus e feliz por haver contemplado e ouvido as revelações.
14. Eu creio que houve muitos com o mesmo nome do apóstolo João, os quais, por amor a ele e por admirá-lo e escutá-lo e por querer ser amados como ele pelo Senhor, afeiçoaram-se a esse mesmo nome, da mesma forma que entre os filhos dos fiéis abundam os nomes de Paulo e Pedro.
15. Assim pois, nos Atos dos apóstolos há também outro João, de sobrenome Marcos,[11] a quem Barnabé e Paulo tomaram consigo e sobre o qual chega a dizer: E tinham também a João como servidor[12]. Pois bem, se foi este o autor, eu não diria, porque não está escrito que chegou com eles à Ásia, mas diz: Navegando desde Pafos, Paulo e seus companheiros chegaram a Perges da Panfília, enquanto que João se separou deles e voltou a Jerusalém[13].
16. Eu creio que foi outro dos que viveram na Ásia. Diz-se que em Éfeso havia dois sepulcros e que cada um dos dois era atribuído a João[14].
17. E pelos pensamentos, pelas palavras e por sua ordenação, compreende-se naturalmente que um é pessoa diferente do outro. Efetivamente o Evangelho e a Carta concordam entre si.
18.     E ambos começam igual. Aquele diz: No princípio era o Verbo[15]; e aquele diz: e o Verbo se fez carne e plantou sua tenda entre nós e contemplamos sua glória, glória como do unigênito do Pai[16]; e esta as mesmas palavras um pouco mudadas: o que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que temos contemplado e nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida, e a vida se manifestou...[17].
19.     Porque isto é o que põe como prelúdio, apontando, segundo o que demons­trou em seguida, aos que andavam dizendo que o Senhor não tinha vindo na carne, pelo que teve também o cuidado de acrescentar: E o que vimos ates­tamos, e vos anunciamos a vida eterna, a que estava no Pai e manifestou-se-nos. O que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros[18].
20. Mantém-se fiel a si mesmo e não se aparta daquilo a que se propôs, mas tudo vai explicando com os mesmos princípios e as mesmas expressões, algumas das quais vamos recordar brevemente:
21. Quem se aplique a ler encontrará em um e na outra muitas vezes as expres­sões: 'a vida', 'a luz', 'afastamento das trevas'; e continuamente: 'a verdade', 'a graça', 'a alegria', 'a carne e o sangue do Senhor', 'o juízo', 'o perdão dos pecados', 'o amor de Deus para conosco, o mandamento de amarmos uns aos outros' e que 'há que se guardar todos os mandamentos'; a refutação do mundo, do diabo e do anticristo, a promessa do Espírito Santo, a adoção como filhos por parte de Deus, a fé, que nos é exigida absolutamente; o Pai e o Filho, por todas as partes. E em uma palavra: é evidente que quem se atém a todas suas características vê que tanto o Evangelho como a Carta apresentam uma mesma e única coloração.
22. Por outro lado, o Apocalipse é muito diferente e alheio a estes escritos. Não está ligado a nenhum deles nem lhes tem afinidade, e quase, por assim dizer, nem uma sílaba tem em comum com eles.
23. Porque assim é que nem a Carta (deixemos já o Evangelho) tem a menor menção ou o menor pensamento sobre o Apocalipse, nem o Apocalipse sobre a Carta, enquanto que Paulo deixa entrever em suas Cartas algo sobre suas revelações, ainda que não as tenha consignado por si mesmas[19].
24. Mas inclusive pelo estilo é possível ainda reconhecer a diferença do Evangelho e da Carta com respeito ao Apocalipse.
25. Aqueles, efetivamente, não somente estão escritos sem faltas contra a língua grega, mas inclusive com a máxima eloqüência por sua dicção, seus raciocínios e a construção de suas expressões. Pelo menos estão muito longe de que se encontre neles algum vocábulo bárbaro, um solecismo, ou de modo geral, um vulgarismo, pois seu autor, segundo parece, possuía os dois saberes, por haver o Senhor lhe outorgado ambos graciosamente: o do conhecimento e o da linguagem.
26.    Quanto ao outro, não lhe negarei que viu revelações e que recebeu conhe­cimento e profecia; não creio porém que seu estilo e sua língua sejam exatamente gregas, antes utiliza idiotismos bárbaros e em algumas partes inclusive comete solecismos. Não é preciso agora dar uma seleção,
27. já que tampouco disse isto por zombaria (que ninguém pense isso) mas unicamente para estabelecer a desigualdade destes escritos."

1.    O que te chamou mais atenção neste texto?
2.    Como ele contribuiu para sua espiritualidade?




[1] Isto é, "Revelação".
[2] Daqui até o final do parágrafo já foi citado em III:XXVIII:4-5.
[3] Ap 22:7-8. Ao contrário do que diz Dionísio, a frase "e eu, João..." não pertence à oração anterior, mas começa uma nova.
[4] Ap 1:1-2.
[5] Ap 1:4.
[6] 1 Jo 1:1.
[7] Mt 16:17.
[8] 2 Jo l;3 Jo 1.
[9] Ap 1:9.
[10] Ap 22:7-8.
[11] At 12:25.
[12] At 13:5.
[13] At 13:13.
[14] Vide III:XXXIX:6.
[15] 1 Jo 1:1.
[16] Jo 1:14.
[17] 1 Jo 1:1-2.
[18] 1 Jo 1:2-3.
[19] 2 Co 12:1-9; Gl 1:12; 2:2; Ef 3:3.

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