terça-feira, 10 de maio de 2016

História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia Livro VI – Capítulos 14-19

38
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VI – Capítulos 14-19


XIV - De quantas escrituras Clemente faz menção
XV - De Heraclas
XVI - De como Orígenes havia se ocupado com afã das divinas Escrituras
XVII - Do tradutor Simaco
XVIII - De Ambrósio
XIX - Quantas coisas se mencionam sobre Orígenes

Texto Bíblico: Hebreus 1.2.

XIV - De quantas escrituras Clemente faz menção
1. Nas Hypotyposeis, para resumir, Clemente dá algumas explicações precisas da Escritura testamentária inteira, sem omitir os escritos discutidos, quero dizer, a Carta de Judas e as demais Cartas católicas, assim como a Carta de Barnabé e o chamado Apocalipse de Pedro.
2.             Diz também que a Carta aos Hebreus é certamente de Paulo, mas que foi escrita em língua hebraica para os hebreus, sendo que Lucas a traduziu cuidadosamente e a editou para os gregos; daí que se encontre o mesmo colorido no estilo desta carta e nos Atos.
3.             E acrescenta que é natural que a expressão "Paulo apóstolo" não esteja escrita no cabeçalho,
"porque - diz - como escrevia aos hebreus, que tinham prevenção contra ele e dele suspeitavam, com absoluta prudência não quis espantá-los já no início pondo seu nome".
4.   E um pouco abaixo acrescenta:
"Pois bem, como dizia o bem-aventurado presbítero, posto que o Senhor, apóstolo do Todo-Poderoso, foi enviado aos hebreus, Paulo, que o havia sido dos gentios, por modéstia não se intitulou apóstolo dos hebreus, e ao mesmo tempo por deferência para com o Senhor e porque, apesar de ser arauto e apóstolo dos gentios, escreve em anexo também uma carta aos hebreus."
5.             Nos mesmos livros Clemente ainda inseriu, sobre a ordem dos Evangelhos, uma tradição recebida dos antigos presbíteros, que é como segue. Dizia que dos Evangelhos escreveram-se primeiro os que contêm as genea­logias[1];
6.      que o Evangelho de Marcos teve a seguinte origem: estando Pedro em Roma pregando publicamente a doutrina e explicando o Evangelho pelo Espírito, os que estavam presentes – e eram muitos - exortaram Marcos, já que este o seguia há muito tempo e recordava-se do que havia dito, a que o pusesse por escrito. Depois que o fez distribuiu o Evangelho a todos que o pediam.
7.             Ao saber Pedro disto, não o impediu nem o estimulou. Quanto a João, o último, sabendo que o corpóreo já estava exposto nos Evangelhos, estimulado por seus discípulos e inspirado pelo sopro divino do Espírito, compôs um Evangelho espiritual. Isto refere Clemente.
8.             E novamente o supracitado Alexandre, em certa carta a Orígenes, faz por sua vez menção a Clemente e a Panteno como a homens conhecidos seus. Escreve assim:
"Porque também isto foi - como sabes - vontade de Deus, que a amizade que provinha de nossos pais[2] permanecesse inviolável; e mais, que fosse mais quente e mais firme;
9.   "efetivamente, reconhecemos como pais aqueles bem-aventurados que nos precederam no caminho e com os quais estaremos dentro em pouco: Panteno, o verdadeiramente bem-aventurado e senhor, e o santo Clemente, que foi meu senhor e me ajudou, e algum outro, se o há. Por meio deles conheci a ti, que em tudo és o melhor e senhor e irmão meu".
E assim estão as coisas.
10.      Quanto a Adamancio (pois também este nome tinha Orígenes)[3], ele mesmo escreve em alguma parte que residiu em Roma no tempo em que Zeferino estava à frente da igreja dos romanos. Diz: "Desejando ver a antiquíssima igreja dos romanos..." Depois de passar ali muito pouco tempo,
11.      regressou a Alexandria, e ali continuava com toda sua diligência as tarefas costumeiras de instrução catequética. Demétrio, bispo do lugar, então ainda o animava e quase suplicava que fosse diligente em dar proveito a seus irmãos.

XV - De Heraclas
1. Mas quando Orígenes viu que ele sozinho não se bastava para um estudo mais profundo dos mistérios divinos, para a investigação e interpretação das Sagradas Escrituras e, além disso, para a instrução catequética dos que dele se acercavam e que nem lhe deixavam respirar, acorrendo à escola uns após outros desde a aurora até o anoitecer, dividiu as multidões, escolheu entre seus discípulos Heraclas[4], varão zeloso nas coisas de Deus, e também muito erudito e não desprovido de filosofia, e o constituiu seu sócio na instrução catequética. E encarregou-o da primeira iniciação dos recém-admitidos, reservando para si a instrução dos já experientes.

XVI - De como Orígenes havia se ocupado com afã das divinas Escrituras
1. E tão cuidadosa era a investigação que Orígenes fazia das palavras divinas, que até aprendeu a língua hebraica, comprou as Escrituras originais, conservadas entre os judeus com os próprios caracteres hebreus, e seguiu a pista das edições de outros tradutores das Sagradas Escrituras, além dos Setenta. Além das traduções trilhadas e alternantes[5] de Aquila, de Simaco e de Teodocio, descobriu outras que, após seguir-lhes o rastro, tirou à luz, não sei de que esconderijos, onde se ocultavam desde antigamente.
2.            A respeito destas, por sua obscuridade e por não saber de quem eram, indicou somente o seguinte: a saber, que uma foi encontrada em Nicópolis, perto de Accio, e a outra em outro lugar parecido.
3.            Nas Hexaplas dos Salmos, ao menos, depois das quatro edições conhecidas, não somente pôs uma quinta tradução, mas também uma sexta e uma sétima; sobre uma delas está indicado que foi encontrada em Jericó, dentro de um jarro, em tempos de Antonino, o filho de Severo.
4.     Todas estas traduções ele reuniu em um só corpo, dividiu-as em membros de frase e as colocou umas frente às outras, junto com o próprio texto hebreu, deixando assim a cópia das chamadas Hexaplas[6]. Aparte, preparou a edi­ção de Aquila, Simaco e Teodocio, junto com a dos Setenta, nas Tetraplas.

XVII - Do tradutor Simaco
1. Pelo que toca a estes mesmos tradutores, deve-se saber que Simaco foi ebionita. A heresia, assim chamada dos ebionitas, é a dos que afirmam que Cristo nasceu de José e de Maria, crêem que foi puramente homem e insistem em que é necessário guardar a lei mais ao modo judeu, segundo o que já sabemos pelo referido anteriormente. E ainda hoje se conservam Comentários de Simaco, nos quais parece querer confirmar a mencionada heresia, explicando-se longamente à custa do Evangelho de Mateus. Orígenes declara que estes escritos, junto com outras interpretações de Simaco sobre as Escrituras, recebeu-os de uma tal Juliana, que por sua vez diz ter herdado os livros do próprio Simaco.

XVIII - De Ambrósio
1.            Por esta época também Ambrósio, que tinha as opiniões da heresia de Valentim, convencido pela verdade apresentada por Orígenes e como se uma luz tivesse iluminado sua mente, deu seu assentimento à doutrina da ortodoxia eclesiástica.
2.            E muitas outras pessoas instruídas, quando se estendeu a fama de Orígenes por todas as partes, acudiam também a ele para experimentar a perícia deste homem nas doutrinas sagradas. E milhares de hereges e não poucos filósofos dos mais ilustres aderiam a ele com afã, e ele os instruía não somente nas coisas divinas, mas inclusive na filosofia de fora.
3.             De fato, àqueles que via naturalmente bem dotados iniciava nos conheci­mentos filosóficos, dando-lhes geometria, aritmética e as outras disciplinas preliminares, guiando-os pelas seitas existentes entre os filósofos, explicando minuciosamente as obras destes e comentando e examinando cada um; de modo que, inclusive entre os gregos proclamavam-no como grande filósofo.
4.      E a muitos, inclusive entre os menos preparados, iniciava nas disciplinas cíclicas, declarando que através delas teriam não pequena capacitação para o exame e preparação das divinas Escrituras; daí que considerasse neces­sário, sobretudo para si mesmo, o exercício nas disciplinas mundanas e nas filosóficas.

XIX - Quantas coisas se mencionam sobre Orígenes
1.            Outras testemunhas de seu êxito nestes estudos são, dentre os próprios gregos, aqueles filósofos que floresceram em seu tempo e em cujas obras encontramos mencionado este homem muitas vezes, umas porque lhe dedicaram suas próprias obras, e outras porque submetem-lhe o fruto de seus próprios trabalhos, como a um mestre, para que os julgasse.
2.     Mas, que necessidade há de dizer isto quando o próprio Porfírio, nosso contemporâneo, estabelecido na Sicília, compôs umas obras contra nós[7], tentando com elas caluniar as Sagradas Escrituras e menciona os que as interpretaram? Não podendo de forma alguma levantar a menor acusação por conta de nossas doutrinas e à falta de razões, volta-se contra os próprios intérpretes para injuriá-los e caluniá-los, e mais especialmente a Orígenes.
3.            Sobre este diz que o conheceu na primeira juventude e trata de caluniá-lo. No entanto, o que realmente faz é recomendá-lo sem saber, seja dizendo a verdade ali onde não lhe era possível dizer outra coisa, seja mentindo no que pensava que passaria despercebido, e então, algumas vezes o acusa de cristão, e outras descreve sua entrega às ciências filosóficas.
4.     Ouve pois o que diz textualmente:
"Alguns, em seu afã de encontrar, não o abandono, mas uma explicação da perversidade das Escrituras judaicas, entregaram-se a umas interpretações que são incompatíveis e estão em desacordo com o escrito, pelo que ofere­cem, mais do que uma apologia em favor do estranho, a aceitação e louvor do mesmo. Efetivamente, as coisas que em Moisés estão ditas com claridade, eles alardeiam que são enigmas e lhes dão um ar divino, como de oráculos cheios de ocultos mistérios, e depois de enfeitiçar com o fumo de seu orgulho a faculdade crítica da alma, levam a cabo suas interpretações."
5.   Depois de mais algumas coisas, diz:
"Mas este gênero de absurdo eles receberam daquele varão com quem eu também tratei sendo ainda muito jovem, que teve enorme reputação e que ainda a tem pelos escritos que deixou, de Orígenes, digo, cuja glória se espalhou amplamente entre os mestres daquelas doutrinas.
6.      Efetivamente, tendo sido ouvinte de Ammonio, que em nosso tempo foi o que mais progrediu em filosofia, chegou a adquirir de seu mestre um grande aproveitamento para o domínio das ciências, mas no que tange à reta orienta­ção da vida empreendeu um caminho contrário ao de Ammonio.
7.             De fato, Ammonio era cristão e seus pais o educaram nas doutrinas cristãs, mas quando entrou em contato com o pensar e a filosofia, imediatamente converteu-se a um gênero de vida conforme as leis. Orígenes, por outro lado, grego e educado nas doutrinas gregas, veio a dar na temeridade própria dos bárbaros. Entregando-se a ela corrompeu-se e corrompeu seu domínio das ciências. Quanto a sua vida, vivia como cristão e contra as leis. Quanto a suas opiniões sobre as coisas e sobre a divindade, pensava como grego e introduzia o grego nas fábulas estrangeiras.
8.             Porque ele vivia em trato contínuo com Platão e freqüentava as obras de Numenio, de Cronio, de Apolofanes, de Longino, de Moderato, de Nicomaco e dos outros autores mais conspícuos dos pitagóricos. Também usava os livros do estóico Queremon e de Comuto. Por eles conheceu a interpreta­ção alegórica dos mistérios dos gregos e a acomodou às Escrituras judias."
9.             Isto diz Porfírio no livro terceiro dos que escreveu Contra os cristãos. Diz a verdade no que tange à educação e à múltipla sabedoria de Orígenes, mas mente claramente (por que não haveria de fazê-lo o adversário dos cristãos?) ao afirmar que este se converteu das doutrinas gregas, enquanto que Ammonio caiu num gênero de vida gentio a partir de uma vida conforme a religião.
10.         Efetivamente, Orígenes conservou vivos os ensinamentos cristãos que vinham de seus pais, como é demonstrado pelas passagens precedentes desta história, e Ammonio manteve com firmeza puros e inatacáveis, inclusive até o fim de sua vida, os princípios da filosofia inspirada, como é atestado de certa forma até hoje pelos trabalhos deste homem, famoso entre a maioria pelos escritos que deixou, como por exemplo o intitulado Da harmonia entre Moisés e Jesus, e todos os outros que se encontram em poder dos amantes do saber.
11.         O que vimos dizendo fica pois como prova da calúnia deste mentiroso, e ao mesmo tempo do múltiplo saber de Orígenes nas ciências dos gregos, sabe­mos do que ele mesmo escreve numa carta defendendo-se contra alguns que o acusavam de seu zelo por aquelas ciências:
12.   "Mas como eu me entregasse à doutrina, e a fama de nossa capacidade ia-se espalhando, e se aproximavam de mim ora hereges, ora os que provinham das ciências gregas, sobretudo os filósofos, determinei-me a examinar as opiniões dos hereges e o que proclamam os filósofos acerca da verdade.
13.     Isto fizemos imitando Panteno, aquele varão que antes de nós ajudou a tantos e que possuía não pequena preparação naquelas ciências, e também a Heraclas, que agora ocupa um posto no presbitério de Alexandria e a quem encontrei junto ao mestre das disciplinas filosóficas, com o qual ele já tinha permanecido cinco anos, antes que eu começasse a ouvir suas lições.
14. Por causa do mestre despojou-se da roupa corrente que antes usava e adotou o uniforme dos filósofos[8], que ainda conserva até hoje, e não cessa de estudar nos livros dos gregos tudo o que pode."
Isto é o que diz Orígenes em defesa de seu exercício na literatura grega.
15. Neste tempo, vivendo ele em Alexandria, apresentou-se-lhe um soldado que entregou umas cartas a Demétrio, o bispo da comunidade, e ao gover­nador do Egito de então, de parte do governador da Arábia, com o fim de que a toda pressa enviassem Orígenes para que se entrevistasse com ele. E Orígenes chegou à Arábia. Mas não muito depois, cumprido o objetivo de sua ida, regressou outra vez a Alexandria.
16. Entretanto deu-se novamente na cidade uma não pequena guerra[9], e Orígenes, saindo ocultamente de Alexandria, foi à Palestina e residiu em Cesaréia. Aqui os bispos lhe pediram que desse conferências e interpretasse as divinas Escrituras publicamente na igreja, apesar de que ainda não havia recebido a ordenação de presbítero.
17.     Que isto foi assim declaram as palavras de Alexandre, o bispo de Jerusalém, e Teoctisto, o de Cesaréia, os quais, escrevendo sobre Demétrio, defendem-se como segue:
"Acrescenta em sua carta que isto jamais se ouviu, nem agora se faz, que preguem leigos estando presentes os bispos. Eu não sei como diz o que evidentemente não é verdade,
18.     porque onde quer que se encontrem homens com capacidade para trazer proveito aos irmãos, os santos bispos os convidam a pregar ao povo. Como convidaram nossos bem-aventurados irmãos: Néon e Evelpis em Laranda, Celso e Paulino em Iconio e Ático e Teodoro em Sinade. E provável que também em outros lugares ocorra o mesmo, sem que nós o saibamos." Assim é que o mencionado varão, ainda que jovem, era honrado não somente pelos compatriotas, mas também pelos bispos do estrangeiro.
19.     Pois bem, quando Demétrio o chamou novamente por carta e exigiu por meio de diáconos de sua igreja que regressasse a Alexandria, depois de chegar, continuou cumprindo as tarefas costumeiras.
               
1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui para a sua espiritualidade?



[1] Isto é, Mt e Lc anteriores a Mc.
[2] Mais do que amizade pessoal, trata-se de ter os mesmos mestres (os "pais"), e manter o mesmo ensinamento.
[3] Para Eusébio Adamancio era um segundo nome de Orígenes, para outros autores seria um apelido.
[4] Segundo Jerônimo, Heraclas já era presbítero. Orígenes deixa-o encarregado da es­cola catequética para dedicar-se a um ensino superior, dando origem à verdadeira Escola de Alexandria.
[5] Isto é, que se seguiam umas às outras, talvez Eusébio queira dizer que são versões parciais e que somente utilizando as três seria possível ter todo o AT em grego.
[6] Há evidências de que Irineu, já antes de Orígenes, tenha utilizado as Hexaplas.
[7] A obra de Porfírio em 15 livros Contra os cristãos foi perdida, assim como as res­postas que suscitou.
[8] Heraclas, presbítero, conserva o manto de filósofo.
[9] Possivelmente o levante de Alexandria e a sangrenta repressão de Caracalla, em 215.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia - Livro VI – Capítulo 6 - 13

37
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VI – Capítulo 6 - 13

VI - De Clemente de Alexandria
1. Tendo sucedido a Panteno, Clemente vinha regendo a catequese de Ale­xandria até aquele mesmo tempo, de maneira que também Orígenes foi um de seus discípulos. Pelo menos Clemente, ao apresentar o material de seus Stromateis, no livro primeiro, expõe um quadro cronológico assi­nalando como limite a morte de Cômodo, com o que fica claro que com­pôs esta obra em tempos de Severo, cuja época se descreve na presente história.

VII- Do escritor Judas
1. Neste mesmo tempo, outro escritor, Judas, comentando por escrito as setenta semanas de Daniel[1], detêm também sua cronologia no décimo ano do Severo. Também cria que a tão decantada aparição do anticristo estava já então se aproximando. A tal ponto a violência daquela perseguição contra nós transtornava as mentes da maioria!

VIII - Da façanha de Orígenes
1.            Neste tempo, estando ocupado no trabalho da catequese em Alexandria, Orígenes leva a cabo uma façanha que, se demonstra um ânimo imatu­ro e juvenil, oferece ao mesmo tempo uma prova plena de fé e de conti­nência.
2.            Efetivamente, tomando muito ao pé da letra com ânimo bastante juvenil a frase: Há eunucos que se castraram a si mesmos pelo reino dos céus[2] e pensando, por um lado, cumprir assim a palavra do Salvador, e por outro, com o fim de evitar entre os infiéis toda suspeita e calúnia vergonho­sa, já que sendo tão jovem, tratava das coisas de Deus não apenas com homens, mas também com mulheres, decidiu-se a concretizar a palavra do Salvador, cuidando para que passasse despercebido para a maioria de seus discípulos.
3.     Mas não lhe era possível, mesmo querendo-o, ocultar semelhante façanha, e assim mais tarde soube-o Demétrio, como presidente daquela igreja. Muito se admirou por aquela façanha, e aceitando o zelo e a sinceridade de sua fé, exortava-o a ter ânimo e o estimulava a empenhar-se agora com mais força na obra da catequese.
4.     Tal era então a atitude de Demétrio. Mas não muito tempo depois, vendo o êxito de Orígenes, sua grandeza, seu brilho e sua fama universal, foi vítima de paixão humana e tratou de descrever aos bispos de todo o mundo aquela façanha como sendo totalmente absurda, quando os bispos mais experientes e mais ilustres da Palestina, a saber, os de Cesaréia e Jerusalém, considerando Orígenes digno de privilégio e da mais alta honra, impuseram-lhe as mãos para ordená-lo presbítero.
5.             Assim pois, no mesmo momento em que Orígenes havia alcançado uma grande glória e havia conquistado em todas as partes e entre todos os homens considerável renome e fama de virtude e sabedoria, Demétrio, não tendo nenhum ouro motivo de acusação, armou um escândalo tre­mendo por aquela ação que Orígenes havia cometido sendo um menino e se atreveu a envolver em suas acusações os que o haviam promovido aos presbiterato.
6.             Isto ocorreu, em realidade, pouco tempo depois. Por este tempo, no entan­to, Orígenes estava entregue em Alexandria ao ensino divino para todos os que acudiam a ele, sem reservas, à noite e inclusive de dia, dedicando sem vacilação todo seu tempo às ciências divinas e aos discípulos que o freqüen­tavam.
7.             Depois de exercer o império durante dezoito anos, Severo é sucedido por seu filho Antonino[3]. Neste tempo, um dos que se portaram virilmente na perseguição e, depois dos combates de sua confissão, foram preservados pela providência divina, foi um tal Alexandre, mencionado a pouco como bispo da igreja de Jerusalém; por ter-se distinguido em sua confissão por Cristo foi considerado digno do mencionado episcopado, ainda que Narciso, seu predecessor, ainda estivesse vivo.

IX - Dos milagres de Narciso
1.            Muitos, pois, e diversos são os milagres que os cidadãos daquela igreja recordam de Narciso, transmitidos por tradição dos irmãos que se sucederam. Entre eles relatam também o seguinte prodígio realizado por ele.
2.            Dizem que uma vez, durante a grande vigília de Páscoa, faltou o azeite aos diáconos, devido a isso apoderou-se da multidão um grande desânimo. Narciso mandou então aos que preparavam as luzes que pegassem água e a levassem a ele.
3.     Feito isto, orou sobre a água e com toda a sinceridade de sua fé no Senhor ordenou que a derramassem nas lâmpadas. Feito também isto, por um poder maravilhoso e divino e contra toda razão, a natureza da água mudou sua qualidade para a do azeite, e muitos dos irmãos que ali estavam conservaram por longo tempo, desde então até nossos dias, um pouco daquele azeite como prova do milagre de então.
4.      Muitas outras coisas dignas de menção contam-se sobre a vida deste homem, entre elas também a seguinte. Uns pobres homenzinhos, incapazes de supor­tar o vigor daquele e a constância de sua vida, temerosos de serem presos e submetidos a castigo, pois eram conscientes de seus inúmeros delitos, toma­ram a dianteira e tramaram e espalharam uma calúnia terrível contra ele.
5.             Assim, com o fim de assegurar-se da confiança dos ouvintes, confirmaram com juramento suas acusações: um jurava para que o fogo o destruísse; outro para que uma enfermidade funesta consumisse seu corpo, e um terceiro, para que seus olhos cegassem. Mas nem assim, nem mesmo jurando, um só fiel prestou-lhes atenção, pela temperança de Narciso, que sempre brilhou ante todos e por sua conduta virtuosa em tudo.
6.             Ele, no entanto, não conseguindo relevar de forma alguma a maldade destas calúnias, e por outro lado, estando há muito tempo em busca de uma vida filosófica, fugiu da multidão inteira da igreja e passou muitos anos oculto em regiões desertas e recônditas.
7.      Mas o grande olho da justiça tampouco permaneceu quieto ante tais abusos, mas a toda pressa começou a perseguição daqueles ímpios com as mesmas desgraças com que se haviam ligado perjurando contra si mesmos, pois o primeiro, sem nenhum motivo, simplesmente assim, tendo caído uma fagulha na casa em que morava, incendiando-a completamente à noite, morreu abrasado com toda a família; o outro se viu de repente com o corpo, desde a planta dos pés até a cabeça, cheio daquela enfermidade com que ele mesmo se castigou de antemão;
8.             e o terceiro, assim que viu o fim dos primeiros, tremendo ante a inelutável justiça de Deus que tudo vê, fez confissão pública do que os três haviam tramado em comum. Em seu arrependimento, consumia-se de tanto gemer e não cessava de chorar, tanto que chegou a perder os dois olhos. Tais foram os castigos que sofreram estes por suas mentiras.

X - Dos bispos de Jerusalém
1. Tendo-se retirado Narciso e não sabendo ninguém onde poderia achar-se, os bispos que presidiam as igrejas limítrofes resolveram impor as mãos a um novo bispo. Este se chamava Díos. Depois de presidir não muito tempo, sucedeu-o Germanion, e a este, Górdio, sob o qual reapareceu Narciso, de alguma parte, como um ressuscitado. Os irmãos chamaram-no novamente para ocupar a presidência. Todos se admiraram ainda mais, por causa de seu retiro, de sua filosofia, e sobretudo pela vingança que Deus tinha opera­do em seu favor.

XI - De Alexandre
1.            Como Narciso já não estivesse em condições de exercer o ministério por causa de sua extrema velhice, a providência de Deus chamou o mencionado Alexandre, que era bispo de outra igreja, para exercer as funções episco­pais junto com Narciso, conforme uma revelação que este teve em sonhos à noite.
2.            Ocorreu pois que Alexandre, como obedecendo a um oráculo, empreendeu uma viagem desde a Capadócia, onde pela primeira vez foi investido do episcopado, a Jerusalém, por motivos de oração e de estudo dos lugares. O povo dali o recebeu com os melhores sentimentos e já não lhe permitiram regressar a seu país, conforme outra revelação que também eles haviam tido durante a noite e segundo uma voz que se fez ouvir claríssima aos mais zelosos dentre eles, pois lhes indicava que saíssem para fora das portas da cidade e recebessem o bispo que Deus lhes havia predestinado. Depois de assim fazer, com o parecer comum dos bispos que regiam as igrejas circundantes, obrigaram Alexandre a permanecer ali forçosamente.
3.      O próprio Alexandre, em carta privada aos antinoítas[4], que ainda se con­serva entre nós, menciona o episcopado de Narciso, compartilhado com ele, quando escreve textualmente ao final da carta:
"Saúda-vos Narciso, o que regeu antes de mim a sede episcopal daqui, e agora, aos cento e dezesseis anos completos, ocupa seu lugar junto a mim nas orações e exorta-vos, assim como eu, a ter um mesmo sentimento."
4.   Assim ocorreram estas coisas. Na igreja de Antioquia, ao morrer Serapion, o episcopado passou em sucessão a Asclepíades, que também fora destacado por sua confissão no tempo da perseguição.
5.    Alexandre menciona também a instituição deste quando escreve assim aos antioquenhos:
"Alexandre, servo e prisioneiro de Jesus Cristo, à bem-aventurada igreja de Antioquia: saúde no Senhor. O Senhor me fez suportáveis e leves as corren­tes quando no tempo de meu encarceramento soube que, por providência divina, se havia confiado o episcopado de vossa santa igreja de Antioquia a Asclepíades, o mais indicado por seu merecimento."
6.    Alexandre faz saber que esta carta foi enviada por meio de Clemente; ao final escreve como segue:
"Esta carta, queridos irmãos meus, envio-a pelo bem-aventurado presbítero Clemente, varão virtuoso e probo, a quem vós já conheceis e a quem também aprovareis. Em sua estada aqui, conforme a providência e super­visão do Dono, consolidou e fortaleceu a Igreja do Senhor."

XII - De Serapion e das obras que dele se conservam
1.            Quanto ao fruto do afã literário de Serapion, é natural que se hajam conservado também outras obras entre outras pessoas, mas a nós não chegaram mais do que estas: A Domno, um que no tempo da perseguição havia caído da fé de Cristo para dar na superstição judia; e A Poncio e Carico, varões eclesiásticos ambos, e outras cartas a outras pessoas;
2.            e outro tratado que compôs Acerca do chamado Evangelho de Pedro[5]; escreveu-o refutando as falsidades que neste se dizem, por causa de alguns da igreja de Rosos que, com o pretexto da dita Escritura, haviam-se desviado para ensinamentos heterodoxos. Será bom oferecer deste livro algumas sentenças nas quais apresenta sua opinião sobre aquele livro; escreve assim:
3.            "Porque também nós, irmãos, aceitamos Pedro e os demais apóstolos como a Cristo[6], mas como homens de experiência que somos, rechaçamos os falsos escritos que levam seus nomes, pois sabemos que não nos transmitiram semelhantes escritos.
4.            Porque eu mesmo, achando-me entre vós, supunha que todos vos ativésseis à fé reta, e sem ter lido o Evangelho que eles me apresentavam com o nome de Pedro, disse: 'se é apenas isto que parece preocupar-vos, que se leia'. Mas agora que me inteirei, pelo que me disseram, de que seu pensamento se ocultava em certa heresia, terei pressa para estar novamente entre vós; de maneira que, irmãos, esperai-me em breve.
5.     Quanto a nós, irmãos, compreendemos a que heresia pertencia Marciano, o qual se contradizia e não sabia o que falava (isto aprendereis pelo que vos escrevi).
6.            Efetivamente, graças a outros que praticaram este mesmo Evangelho, ou seja, graças aos sucessores dos que o iniciaram, aos quais chamaremos docetas (porque a maior parte de seu pensamento pertence a este ensino), por terem-no emprestado eles, pudemos lê-lo cuidadosamente, e achamos a maior parte conforme a reta doutrina do Salvador, mas também algumas coisas que se distinguem e que vos submetemos." Isto sobre Serapion.

XIII - Das obras de Clemente
1. De Clemente, por outro lado, conservaram-se entre nós os Stromateis, os oito livros inteiros, aos quais se dignou intitular: De Tito Flávio Clemente, Stromateis das Memórias gnósticas segundo a verdadeira filosofia.
2.            De igual número que estes são seus livros intitulados Hypotyposeis[7], nos quais menciona expressamente Panteno como seu mestre e expõe suas interpretações das Escrituras e suas tradições.
3.            Há também de Clemente um Discurso aos gregos, O Protréptico, e três livros da obra intitulada O Pedagogo; outro tratado seu, o assim chamado Quem é o rico que se salva?, e o tratado Sobre a Páscoa; e tratados Sobre o jejum e Sobre a maledicência, assim como a Exortação à paciência ou Aos recém-batizados, e o intitulado Cânon eclesiástico ou Contra os judaizantes, que ele dedicou ao mencionado bispo Alexandre.
4.            Agora bem, nos Stromateis fabricou-se uma tapeçaria de citações não somente da divina Escritura, mas também das obras dos gregos, sempre que lhe parecia que também eles haviam dito algo aproveitável. E menciona as opiniões do povo, enquanto explica as dos gregos e as dos bárbaros;
5.            e além disso emenda as falsas opiniões dos heresiarcas, desdobra uma grande informação e nos proporciona a base de uma sábia e variada instrução. Com tudo isto mistura também as opiniões dos filósofos, de onde provavel­mente se originou que inclusive o título dos Stromateis se ajustasse ao tema.
6.            Nos mesmos livros faz também uso de testemunhos tomados das Escrituras discutidas: das chamadas Sabedoria de Salomão e Sabedoria de Jesus (filho) de Sirac; da Carta aos Hebreus, das Cartas de Barnabé, de Clemente e de Judas;
7.             e menciona o discurso de Taciano Contra os gregos e também a Cassiano por haver composto uma Cronografia, e também os escritores judeus Fílon, Aristóbulo, Josefo, Demétrio e Eupolemo, por todos eles haverem demons­trado em seus escritos que Moisés e o povo judeu eram mais antigos do que as origens dos gregos.
8.             De muitos outros ensinamentos úteis estão cheias as mencionadas obras deste homem. Na primeira delas declara sobre si mesmo que está muito próximo da sucessão dos apóstolos, e nela promete escrever também um comentário do Gênesis.
9.      E em seu tratado Sobre a Páscoa confessa que foi compelido por seus companheiros a colocar por escrito, em proveito dos que viessem depois, as tradições que ele teve a sorte de ouvir da boca dos antigos presbíteros, e menciona Meliton, Irineu e alguns outros, dos quais inclusive cita passagens.




[1] Dn 9:24.
[2] Mt 19:12.
[3] Septimio Severo é sucedido por seus dois filhos: Geta e Caracalla, pouco depois Caracalla manda assassinar Geta e fica só no império. Caracalla era um apelido, seu nome era Marco Aurélio Antonino.
[4] Habitantes de Antinoe ou Antinópolis, às margens orientais do Nilo.
[5] Até 1886-87, quando se descobriu um grande fragmento deste Evangelho em Akhmin, no Egito, só se conhecia a respeito o que Eusébio relata do escrito de Serapion.
[6] Mt 10:40.
[7] Ou seja, rascunhos, esquemas. Esta obra se perdeu, exceto por fragmentos conserva­dos por Eusébio.