quinta-feira, 28 de abril de 2016

Orígines - História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia Livro VI – Capítulos 1-5

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História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VI – Capítulos 1-5
I - Da perseguição de Severo
II - Da educação de Orígenes desde menino
III - De como Orígenes, sendo ainda um rapaz, ensinava a doutrina de Cristo
IV - Quantos dos instruídos por Orígenes foram elevados à categoria de már­tires
V - De Potamiena

 Texto Bíblico: Mt 5:33-34.

I - Da perseguição de Severo
1. E como também Severo suscitou uma perseguição contra as igrejas, em todas as partes consumaram-se esplêndidos martírios dos atletas da religião, mas multiplicaram-se especialmente em Alexandria. Os atletas de Deus foram enviados para lá, como ao maior estádio, desde o Egito e de toda a Tebaida, e por sua firme paciência em diversos tormentos e gêneros de morte, cingiram-se com as coroas preparadas por Deus. Entre eles achava-se também Leônidas, chamado "o pai de Orígenes"[1], que foi decapitado, e deixou seu filho ainda muito jovem. Não seria demais descrever brevemente com que predileção pela palavra divina viveu o rapaz desde então, já que é muito abundante o que se conta sobre ele entre o povo.

II - Da educação de Orígenes desde menino
1.            Muitas coisas poderia dizer, na verdade, quem tentasse colocar por escrito a seu gosto a vida deste homem, mas dispor ordenadamente o que a ele diz respeito exigiria inclusive uma obra especial[2]. Mesmo assim, nós resumi­remos por enquanto com a brevidade possível a maior parte e exporemos sobre ele somente algumas coisas, tomando dos dados de algumas cartas e do relato dos discípulos que sobreviveram até nossos dias.
2.            Sobre Orígenes, mesmo os fatos de quando usava fraldas, por assim dizer, parecem-me dignos de menção. Seguia Severo pelo décimo ano de seu reinado, e Leto governava Alexandria e o resto do Egito. O episcopado das igrejas dali acabara de passar a Demétrio, sucedendo a Juliano[3].
3.            Ao acender-se pois, com a maior violência a fogueira da perseguição e sendo inumeráveis os que se cingiam com a coroa do martírio, tal foi a paixão do martírio que se apoderou da alma de Orígenes, ainda um menino, que ardia para lançar-se de encontro aos perigos e pular e jogar-se à luta.
4.     Muito pouco faltou, na verdade, para que a morte se aproximasse, não fosse pela divina e celestial providência que, em proveito da grande maioria e por meio de sua mãe, se interpôs como obstáculo ao seu zelo.
5.            Ela primeiramente rogou-lhe com palavras, exortando-o a ter consideração por suas disposições maternais para com ele, mas quando o viu terrivelmente excitado, todo ele preso pelo desejo do martírio ao saber que seu pai tinha sido preso e encarcerado, escondeu todas suas roupas e assim obrigou-o a permanecer em casa.
6.            Mas ele, não podendo fazer outra coisa e sendo-lhe impossível dar sossego a um zelo que excedia sua idade, enviou a seu pai uma carta muito estimulante sobre o martírio, na qual o animava dizendo textualmente: "Cuida-te, não aconteça que por nossa causa mudes de parecer." Fique isto consignado por escrito como primeiro indício da agudeza de pensamento do menino Orígenes e de sua nobilíssima disposição para a religião.
7.            E efetivamente, tendo-se exercitado já desde pequeno nas divinas Escrituras, tinha já lançados não pequenos fundamentos para as doutrinas da fé. Também nestas tinha se ocupado sem medida, pois seu pai, antes do ciclo de estudos comum a todos, fez com que sua preocupação por elas não fosse secundária.
8.            Em conseqüência, antes de ocupar-se das disciplinas helênicas, em toda ocasião o introduzia a exercitar-se nos estudos sagrados, exigindo-lhe cada dia passagens de memória e relações escritas.
9.     Estes exercícios não desagradavam o menino, antes até, empenhava-se neles com ardor excessivo, ao ponto de que, não se contentando com os sentidos simples e óbvios das Escrituras Sagradas, já desde então buscava algo mais e investigava visões mais profundas, de forma que chegava a pôr em apuros seu pai perguntando-lhe o que queria significar o sentido da Escritura divinamente inspirada.
10.     Este aparentava repreendê-lo abertamente, exortando-o a não indagar nada que excedesse sua idade nem mais adiante do sentido evidente, mas no seu íntimo regozijava-se enormemente e proclamava perante Deus, autor de todo bem, seu maior agradecimento por tê-lo feito digno de ser pai de tal filho.
11.     E conta-se que muitas vezes, pondo-se junto ao menino que dormia, desnudava-lhe o peito como se dentro dele habitasse um espírito divino, beijava-o com referência e se considerava feliz por seu nobre rebento. Estas coisas e outras do mesmo estilo recordam-se sobre a infância de Orígenes.
12.     Quando seu pai morreu mártir, ele ficou só com sua mãe e seis irmãos menores, quando ainda não contava mais de dezessete anos[4].
13.     A fazenda paterna foi confiscada pelo tesouro imperial, e ele com os seus encontrou-se em indigência das coisas necessárias para a vida. Mas foi considerado digno da providência divina e encontrou proteção além de tranqüilidade em uma senhora riquíssima em meados da vida e muito distinta, mas que rodeava de atenções um homem muito conhecido, um dos hereges que então havia em Alexandria. Este era antioquenho de origem, e a mencionada senhora tinha-o consigo como filho adotivo e rodeava-o das maiores honras.
14. Mas Orígenes, que por necessidade estava habitualmente com ele, já desde aquela idade dava provas claras de sua ortodoxia na fé, pois ainda que uma multidão incontável, não apenas de hereges, mas também dos nossos, se reunia junto a Paulo (assim se chamava o homem), porque lhes parecia eloqüente, jamais se conseguiu que o acompanhasse na oração, guardando desde menino a regra de Igreja e abominando - como diz textualmente sobre si mesmo em alguma parte - os ensinamentos das heresias. 15. Previamente iniciado por seu pai nas disciplinas dos gregos, depois da morte deste entregou-se por inteiro com maior zelo ao estudo das letras, de forma que, não muito depois da morte do pai, tinha já uma preparação suficiente em conhecimentos gramaticais. Com sua entrega a estes estudos procurava em abundância - para sua idade - o que era necessário[5].

III - De como Orígenes, sendo ainda um rapaz, ensinava a doutrina de Cristo
1.            E estando entregue ao ensino - segundo ele mesmo nos informa em algum de seus escritos - e não havendo em Alexandria ninguém dedicado à instrução catequética, pois todos tinham sido expulsos pela ameaça de perseguição[6], alguns gentios acudiram a ele para escutar a palavra de Deus.
2.            Dá a entender que o primeiro deles foi Plutarco, o qual, depois de uma vida honesta, foi adornado com o martírio divino. O segundo foi Heraclas, irmão de Plutarco, que depois de dar ele mesmo numerosos exemplos de vida filosófica e disciplina, foi considerado digno do episcopado de Alexandria, depois de Demétrio.
3.            Orígenes ia completar dezoito anos quando foi posto à frente da escola cate­quética, momento em que, sob a perseguição do governador de Alexan­dria Aquila, realizava grandes progressos. Foi então também que seu nome se fez famoso entre todos a quem movia a fé, pela acolhida e solicitude que mostrava para com todos os santos mártires conhecidos e desconhecidos.
4.            Com efeito, não somente os assistia quando estavam no cárcere e quando eram julgados, até a sentença final, mas também depois desta, quando os santos mártires eram conduzidos à morte, com extrema ousadia e expondo-se aos mesmos perigos. Tanto é que muitas vezes, por aproximar-se resoluta­mente e atrever-se a saudar os mártires com um beijo, faltou pouco para que a plebe de pagãos que estava em redor, enfurecida, o apedrejasse, mas a cada vez, com a ajuda da destra divina, escapou milagrosamente.
5.     E esta mesma e celestial graça o guardou em outras ocasiões uma e outra vez - impossível dizer quantas - quando se conspirava contra ele devido ao seu excesso de zelo e de ousadia em favor da doutrina de Cristo. A guerra que os infiéis faziam contra ele era tal que se formaram esquadrões e postavam soldados em torno da casa em que se achava, devido à multidão dos que dele recebiam a instrução da fé sagrada.
6.             Dia a dia a perseguição contra ele se acirrava tanto que em toda a cidade já não havia lugar para ele: mudando de casa em casa, de todos os lugares o expulsavam por causa do grande número dos que por ele se aproximavam do ensinamento divino. E a sua própria conduta prática tinha traços admiráveis de virtude da mais genuína filosofia.
7.      (Demonstrava pois o ditado, "tal como sua palavra, assim seu caráter, e tal como seu caráter, assim sua palavra".) Esta era sobretudo a causa de que, com a ajuda do poder divino, arrastasse milhares de pessoas a imitá-lo.
8.             E quando viu que os discípulos acorriam ainda mais numerosos e que ele era o único encarregado pelo chefe da igreja, Demétrio, da escola catequética, considerando que o ensino da gramática era incompatível com o exercício das disciplinas divinas, rompeu sem vacilar com o estudo da gramática como inútil e contrário às ciências divinas.
9.      Depois, com bom cálculo, para não precisar da ajuda de outros, desfez-se de todas as obras que até então tinha de literatura antiga[7], trabalhadas com muito gosto, e se contentava com os quatro óbolos que diariamente lhe levava aquele que as comprou. Durante muitos anos continuou levando este tipo de vida de filósofo, arrancando de si mesmo tudo que pudesse dar estímulo a suas paixões juvenis, suportando durante todo o dia consideráveis fadigas ascéticas, e à noite consagrando a maior parte do tempo ao estudo das divinas Escrituras. Assim perseverava numa vida a mais filosófica possí­vel, seja em exercícios de jejum, seja reduzindo o tempo de sono, que de qualquer forma, nunca tomava sobre o leito, mas a toda custa sobre o chão.
10.     Acima de tudo achava que era necessário guardar aquelas sentenças evangélicas do Salvador que exortava a não usar duas túnicas, nem sandálias, e a não consumir-se com as preocupações do amanhã[8].
11.     E mais, com um ardor superior aos seus anos, mantendo-se firme no frio e na nudez[9] e avançando em direção a uma pobreza extrema, enchia de admiração os que o rodeavam. Também causava pena a muitos, que lhe suplicavam que compartisse de seus bens, pois viam as dificuldades que passava pelo ensinamento divino; mas ele em nada cedia a sua insistência.
12. Conta-se por exemplo que durante muitos anos pisou a terra sem usar calça­do algum; e mais, absteve-se por muitos anos do uso do vinho e de todo outro alimento não necessário, ao ponto de arriscar-se a arruinar e estropear seu peito. 13. Oferecendo tais exemplos de vida filosófica a quantos o contemplavam, era natural que incitasse a maioria de seus discípulos a um zelo semelhante ao seu, tanto que pessoas destacadas, inclusive entre os gentios infiéis e dos que procediam da ilustração e da filosofia[10], pouco a pouco se submetiam ao ensinamento que ele dava, e tão sinceramente receberam dele no fun­do de suas almas a fé na palavra divina, que também eles sobressaíram no momento de perseguição de então, de forma que alguns inclusive foram detidos e acabaram no martírio.

IV - Quantos dos instruídos por Orígenes foram elevados à categoria de már­tires
1.            O primeiro destes, pois, foi Plutarco, mencionado pouco acima. Quando este era conduzido à morte, novamente faltou pouco para que aquele de quem estamos falando e que o assistia até o último instante de sua vida fosse linchado ali mesmo pelos cidadãos, como culpado evidente daquela morte. Mas também então a vontade de Deus continuava guardando-o.
2.            Depois de Plutarco, o segundo dos discípulos de Orígenes a assinalar-se como mártir é Sereno, que por meio do fogo deu prova da fé que havia recebido.
3.            O terceiro mártir da mesma escola foi Heráclides, e depois dele, o quarto, Heron; aquele ainda era catecúmeno, este neófito; ambos foram decapitados. Todavia, além destes, da mesma escola houve outro Sereno, distinto do primeiro, quinto a proclamar-se atleta da religião, de quem diz a tradição que, depois de suportar muitos tormentos, foi decapitado. E entre as mulheres também Herais, ainda catecúmena, terminou a vida "após receber - como diz ele mesmo em alguma parte - o batismo de fogo".

V - De Potamiena
1. Entre eles conta-se como sétimo Basílides, o que conduziu a famosíssima Potamiena a sua execução. Muita coisa se conta ainda hoje sobre ela entre seus compatriotas. Depois de sustentar mil combates contra homens dissolutos em defesa da pureza de seu corpo e de sua virgindade que a distinguiam (pois assim como a força de sua alma, também a beleza de seu corpo estava em plena floração) e depois de suportar inúmeros tormentos, por fim, depois de torturas terríveis e que fazem estremecer só em nomeá-las, morreu ardendo viva juntamente com sua mãe, Marcela.
2.             Conta-se que o juiz, cujo nome era Aquila, depois de fazê-la atormentar cruelmente por todo o corpo, finalmente ameaçou entregá-la aos gladia­dores para ultraje de seu corpo, mas ela, depois de refletir ensimesmada por breves instantes, ao ser questionada sobre o que decidia, deu tal resposta, que aos ouvidos daqueles parecia soar como algo ímpio.
3.             Ainda falava quando recebeu os termos de sua sentença. Basílides, um dos funcionários militares, tomou-a e a conduziu para sua execução. Como a turba tentava molestá-la com palavras indecentes, ele rechaçava e afugentava os insolentes e mostrava para com ela a maior compaixão e humanidade. Ela, por sua parte, aceitando a simpatia de que era alvo, exortava aquele homem a ter valor, pois ela pediria a seu próprio Senhor nada mais que partir e em breve poderia corresponder ao que ele havia feito por ela.
4.      Dito isto, enfrentou com nobreza seu fim enquanto derramavam o piche fervente sobre ela lenta e paulatinamente pelos diversos membros de seu corpo, desde a planta dos pés até o topo da cabeça.
5.             E assim foi o combate travado por esta jovem digna de louvor. Não muito depois, Basílides, tendo seus companheiros de milícia exigido juramento por algum motivo, afirmou que de modo algum poderia jurar[11], porque era cristão e o proclamava publicamente. A princípio, durante algum tempo, pensavam que gracejava, mas como ele insistisse obstinadamente, conduziram-no ao juiz; e também perante este proclamou sua resistência e foi lançado à prisão.
6.      Quando seus irmãos em Deus chegaram-se a ele e trataram de informar-se sobre a causa desta repentina e maravilhosa decisão, conta-se que disse que Potamiena tinha lhe aparecido durante a noite, três dias depois de seu martírio, cingira-lhe a cabeça com uma coroa e lhe havia dito que pedira ao Senhor graça por ele, que havia obtido o pedido e que não tardando muito o tomaria consigo. Ante isto os irmãos aplicaram-lhe o selo do Senhor[12], e no dia seguinte, depois de brilhar no testemunho do Senhor, foi decapitado.
7.      Conta-se mesmo que, pelas datas mencionadas, muitos outros cidadãos de Alexandria se acercavam em massa à doutrina de Cristo, porque em sonhos lhes aparecera Potamiena, segundo diziam, e os convidara a isto. Mas baste já com isto.

1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui para a sua espiritualidade?

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Orígenes, cognominado Orígenes de Alexandria ou Orígenes de Cesareia ou ainda Orígenes, o Cristão (Alexandria, Egipto, c. 185 — Cesareia, 253 ), foi um teólogo, filósofo neoplatônico patrístico e é um dos Padres gregos. Um dos mais distintos discípulos de Clemente de Alexandria , Orígenes foi um prolífico escritor cristão, de grande erudição, ligado à Escola Catequética de Alexandria, no período pré-niceno. Inspirados em Orígenes e na Escola de Alexandria, muitos escritores cristãos desenvolveram suas obras. Orígenes de Alexandria não deve ser confundido com o filósofo Orígenes, o Pagão (210-280), mais jovem e também integrante da Escola de Alexandria, porém discípulo de Plotino


[1] A fama do filho deu nome ao pai.
[2] Esta obra existiu: a Apologia de Orígenes, composta por Panfilo e Eusébio, da qual só nos resta uma tradução latina do primeiro livro.
[3] Eusébio equivoca-se aqui, Demétrio já estava há doze ou treze anos no episcopado.
[4] Teria cerca de quinze anos.
[5] Certamente dava aulas particulares de gramática.
[6] Os diretores da escola catequética tinham se retirado para longe de Alexandria, o que demonstra o caráter localizado da perseguição.
[7] Talvez seja exagero, já que ele abandonou o ensino como fim e não o estudo como meio.
[8] Mt 10:10; 6:34.
[9] 2 Co 11:27.
[10] Filósofos gentios, no sentido próprio da palavra.
[11] Mt 5:33-34.
[12] Isto é, o batismo.

sábado, 23 de abril de 2016

Estudo Especial: João da Cruz


João da Cruz

Nasceu em Fontiveros, na Espanha, em 1542. Seus pais, Gonçalo e Catarina, eram pobres tecelões. Gonçalo morreu cedo e a viúva teve de passar por dificuldades enormes para sustentar os três filhos: Francisco, João e Luís, sendo que este último morreu quando ainda era criança. Como João de Yepes (era este o seu nome de batismo) mostrou-se inclinado para os estudos, a mãe o enviou para o Colégio da Doutrina. Em 1551, os padres jesuítas fundaram um colégio em Medina (centro comercial de Castela). Nele, esse grande santo estudou Ciências Humanas.
Com 21 anos, sentiu o chamado à vida religiosa e entrou na Ordem Carmelita, na qual pediu o hábito. Nos tempos livres, gostava de visitar os doentes nos hospitais, servindo-os como enfermeiro. Ocasião em que passou a ser chamado de João de Santa Maria. Devido ao talento e à virtude, rapidamente foi destinado para o colégio de Santo André, pertencente à Ordem, em Salamanca, ao lado da famosa Universidade. Ali estudou Artes e Teologia. Foi nesse colégio nomeado de “prefeito dos estudantes”, o que indica o seu bom aproveitamento e a estima que os demais tinham por ele. Em 1567 foi ordenado sacerdote.
Desejando uma disciplina mais rígida, João da Cruz quase saiu da Ordem para ir ingressar na Ordem dos Cartuxos, mas, felizmente, encontrou-se com a reformadora dos Carmelos, Teresa D’Ávila, a qual havia recebido autorização para a reforma dos conventos masculinos.
João, empenhado na reforma, conheceu o sofrimento, as perseguições e tantas outras resistências. Chegou a ficar nove meses preso num convento em Toledo, até que conseguiu fugir. Dessa forma, ele transformou, em Deus e por Deus, todas as cruzes num meio de santificação para si e para os irmãos.
 Três coisas pediu e acabou recebendo de Deus: primeiro: força para trabalhar e sofrer muito; segundo: não sair deste mundo como superior de uma comunidade; e terceiro: morrer desprezado e escarnecido pelos homens.
Pregador, místico, escritor e poeta, esse grande santo da Igreja faleceu após uma penosíssima enfermidade, em 1591, com 49 anos de idade. Foi canonizado no ano de 1726 e, em 1926, o Papa Pio XI o declarou Doutor da Igreja.
Escreveu obras bem conhecidas como: Subida do Monte Carmelo; Noite escura da alma (estas duas fazem parte de um todo, que ficou inacabado); Cântico espiritual e Chama viva de amor. 
Assista este curto filme sobre João da Cruz. 





POEMAS MAIORES DE JOÃO DA CRUZ
Cântico espiritual – poesia

I

Onde é que te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo fugiste,
Havendo‑me ferido;
Saí, por ti clamando, e eras já ido.

II

Pastores que subirdes
Além, pelas malhadas, ao Outeiro,
Se, porventura, virdes
Aquele a quem mais quero,
Dizei‑lhe: que adoeço, peno, e morro.
III

Buscando meus amores,
irei por estes montes e ribeiras;
Não colherei as flores,
nem temerei as feras,
E passarei os fortes e fronteiras.

PERGUNTA ÀS CRIATURAS

IV
0 bosques e espessuras,
Plantados pela mão de meu Amado!
ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei‑me se por vós ele há passado!

RESPOSTA DAS CRIATURAS
V

Mil graças derramando,
Passou por estes soutos com presteza,
E, enquanto os ia olhando,
Só com sua figura
A todos revestiu de formosura.


ESPOSA

VI

Quem poderá curar‑me?!
Acaba de entregar‑te já deveras;
Não queiras enviar‑me
Mais mensageiro algum,
Pois não sabem dizer‑me o que desejo.

VII

E todos quantos vagam,
De ti me vão mil graças relatando,
E todos mais me chagam;
E deixa‑me morrendo
Um "não sei quê", que ficam balbuciando.

VIII

Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo onde já vives?
Se fazem com que morras
As flechas que recebes
Daquilo que do Amado em ti concebes?

IX

Por que, pois, hás chagado
Este meu coração, o não saraste?
E, já que mo hás roubado,
Por que assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?

X

Extingue os meus anseios,
Porque ninguém os pode desfazer;
E vejam‑te meus olhos,
Pois deles és a luz,
E para ti somente os quero ter.

XI

Mostra tua presença!
Mate‑me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor jamais se cura,
A não ser com a presença e com a figura.

XII

0 cristalina fonte,
Se nesses teus semblantes prateados
Formasses de repente
Os olhos desejados
Que tenho nas entranhas debuxados!

XIII

Aparta‑os, meu Amado,
Que eu alço o vôo.

ESPOSO

Oh! volve‑te, columba,
Que o cervo vulnerado
No alto do outeiro assoma,
Ao sopro de teu vôo, e fresco toma.

ESPOSA

No Amado acho as montanhas,
Os vales solitários, nemorosos,
As ilhas mais estranhas,
Os rios rumorosos,
E o sussurro dos ares amorosos;

XV

A noite sossegada,
Quase aos levantes do raiar da aurora;
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recreia e que enamora.

XVI

Caçai‑nos as raposas,
Que está já toda em flor a nossa vinha;
Enquanto estas rosas
Faremos uma pinha,
E ninguém apareça na colina!

XVII

Detém‑te, Aquilão morto!
Vem, Austro, que despertas os amores:
Aspira por meu horto,
E corram seus olores,
E o Amado pascerá por entre as flores.

XVIII

0 ninfas da Judéia,
Enquanto pelas flores e rosais
Vai recendendo o âmbar,
Ficai nos arrabaldes
E não ouseis tocar nossos umbrais.

XIX

Esconde‑te, Querido!
Voltando tua face, olha as montanhas;
E não queiras dizê‑lo,
Mas olha as companheiras
Da que vai pelas ilhas mais estranhas.

ESPOSO

XX

A vós, aves ligeiras,
Leões, cervos e gamos saltadores,
Montes, vales, ribeiras,
Águas, ventos, ardores,
E, das noites, os medos veladores:


XXI

Pelas amenas liras
E cantos de sereias, vos conjuro
Que cessem vossas iras,
E não toqueis no muro,
Para a Esposa dormir sono seguro.

XXII

Entrou, enfim, a Esposa
No horto ameno por ela desejado;
E a seu sabor repousa,
0 colo reclinado
Sobre os braços dulcíssimos do Amado.

XXIII

Sob o pé da macieira,
Ali, comigo foste desposada;
Ali te dei a mão,
E foste renovada
Onde a primeira mãe foi violada.

ESPOSA

XXIV

Nosso leito é florido,
De covas de leões entrelaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado, 
De mil escudos de ouro coroado.

XXV

Após tuas pisadas
Vão discorrendo as jovens no caminho,
Ao toque de centelha,
Ao temperado vinho,
Dando emissões de bálsamo divino.

ESPOSA

XXVI

Na interior adega
Do Amado meu, bebi; quando saía,
Por toda aquela várzea
já nada mais sabia,
E o rebanho perdi que antes seguia.

XXVII

Ali me abriu seu peito
E ciência me ensinou mui deleitosa;
E a ele, em dom perfeito,
Me dei, sem deixar coisa,
E então lhe prometi ser sua esposa.

XXVIII

Minha alma se há votado,
Com meu cabedal todo, a seu serviço;
já não guardo mais gado,
Nem mais tenho outro ofício,
Que só amar é já meu exercício.

XXIX

Se agora, em meio à praça,
já não for mais eu vista, nem achada,
Direis que me hei perdido,
E, andando enamorada,
Perdidiça me fiz e fui ganhada.


XXX

De flores e esmeraldas,
Pelas frescas manhãs bem escolhidas
Faremos as grinaldas
Em teu amor floridas,
E num cabelo meu entretecidas.

XXXI

Só naquele cabelo
Que em meu colo a voar consideraste,
‑ Ao vê‑lo no meu colo,
Nele preso ficaste,
E num só de meus olhos te chagaste.

XXXII

Quando tu me fitavas,
Teus olhos sua graça me infundiam;
E assim me sobreamavas,
E nisso mereciam
Meus olhos adorar o que em ti viam.

XXXIII

Não queiras desprezar‑me,
Porque, se cor trigueira em mim achaste,
já podes ver‑me agora,
Pois, desde que me olhaste,
A graça e a formosura em mim deixaste.

XXXIV

Eis que a branca pombinha
Para a arca, com seu ramo, regressou;
E, feliz, a rolinha
0 par tão desejado
já nas ribeiras verdes encontrou.


XXXV

Em solidão vivia,
Em solidão seu ninho há já construído;
E em solidão a guia,
A sós, o seu Querido,
Também na solidão, de amor ferido.

XXXVI

Gozemo‑nos, Amado!
Vamo‑nos ver em tua formosura,
No monte e na colina,
Onde brota a água pura;
Entremos mais adentro na espessura.

XXXVII

E, logo, as mais subidas
Cavernas que há na pedra, buscaremos;
Estão bem escondidas;
E juntos entraremos,
E das romãs o mosto sorveremos.

XXXVIII

Ali me mostrarias
Aquilo que minha alma pretendia,
E logo me darias,
Ali, tu, vida minha,
Aquilo que me deste no outro dia.

XXXIX

E o aspirar da brisa,
Do doce rouxinol a voz amena,
0 souto e seu encanto,
Pela noite serena,
Com chama que consuma sem dar pena.

XL

Ali ninguém olhava;
Aminadab tampouco aparecia;
0 cerco sossegava;
Mesmo a cavalaria,
Só à vista das águias, já descia.


NOITE ESCURA - POESIA

1. Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamadas,
Oh! ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada.

2. Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada,
Oh! ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.

3. Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia
Além da que no coração me ardia.

4. Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.

5. Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada!
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!

6. Em meu peito florido
Que, inteiro, para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.

7. Da ameia a brisa amena,
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava,

8. Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.


Chama viva de amor - poesia

“Oh! Chama de amor viva
que ternamente feres
De minha alma no mais profundo centro!
Pois não és mais esquiva,
Acaba já, se queres,
Ah! Rompe a tela deste doce encontro.

Oh! Cautério suave!
Oh! Regalada chaga!
Oh! Branda mão! Oh! Toque delicado
Que a vida eterna sabe, 
E paga toda dívida!
Matando, a morte em vida me hás trocado.

Oh! Lâmpadas de fogo
Em cujos resplendores
As profundas cavernas do sentido,
- que estava escuro e cego, -
Com estranhos primores
Calor e luz dão junto a seu Querido!

Oh! Quão manso e amoroso
Despertas em meu seio
Onde tu só secretamente moras:
Nesse aspirar gostoso,
De bens e glória cheio,
Quão delicadamente me enamoras!”