quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Livro IV - Capítulos 24 a 30

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História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro IV - Capítulos 24 a 30
São Teofilo de antioquia

Texto Bíblico: I Coríntios 11.1

XXIV - De Teófilo, bispo de Antioquia
XXV - De Felipe e de Modesto
XXVI - De Meliton e dos que ele menciona
XXVII  - De Apolinário
XVIII - De Musano
XXIX - Da heresia de Taciano
XXX - De Bardesanes o Sírio e das obras que se diz serem suas


XXIV - De Teófilo, bispo de Antioquia
1. De Teófilo, que já mencionamos como bispo da igreja de Antioquia, possuímos os três livros elementares dirigidos A Autólico[1], e outro que tem por título Contra a heresia de Hermógenes, no qual utiliza testemunhos tirados do Apocalipse de João. Dele possuímos também alguns outros livros de catequese.
Nesta época os hereges seguiam com o mesmo empenho corrompendo, como o joio, a limpa semente do ensinamento apostólico, e os pastores das igrejas de todo lugar os afugentavam do meio das ovelhas de Cristo como a bestas selvagens e rechaçavam-nos, ora por meio de advertências e exortações dirigidas aos irmãos, ora pondo-os em evidência com perguntas e refutações orais, cara a cara, e também corrigindo suas opiniões com argumentos bem precisos por meio de tratados escritos. Teófilo, assim como outros, lutou contra eles, segundo declara certo tratado seu nada vulgar Contra Márcion, tratado que, junto com outros de que falamos, conserva-se até hoje[2]. Teófilo foi sucedido por Maximino, sétimo da igreja de Antioquia a partir dos apóstolos.

XXV - De Felipe e de Modesto
1. Felipe, que pelas palavras de Dionísio conhecemos como bispo da igreja de Gortina, compôs também um importantíssimo tratado Contra Márcion. E o mesmo fizeram Irineu e Modesto[3]; este, inclusive melhor do que os outros, colocou à vista de todos o erro deste homem, assim como o de muitos, cujas obras se conservam ainda entre numerosos irmãos até hoje.

XXVI - De Meliton e dos que ele menciona
1.            Neste tempo floresciam também, muito destacados, Meliton, bispo da igreja de Sardes, e Apolinário, da de Hierápolis. Ambos, cada um em particular, dirigiram ao imperador romano já mencionado daquele tempo vários tratados apologéticos em favor da fé.
2.     Deles chegaram até nós as seguintes obras. De Meliton, os dois livros Sobre a Páscoa e o livro Sobre a conduta e sobre os profetas; os tratados Sobre a Igreja e Sobre o domingo; ainda, Sobre a fé do homem[4], Sobre a criação e Sobre a obediência dos sentidos à fé; além destes, os tratados Sobre a alma e o corpo...(.. .)[5], Sobre o batismo e sobre a verdade e sobre a fé e o nascimento de Cristo; um livro Sobre sua profecia; e Sobre a alma e o corpo[6], Sobre a hospitalidade, A chave e os escritos Sobre o diabo e o Apocalipse de João e o livro Sobre Deus encarnado; e além de todos estes, um livrinho A Antonino.
3.   Começando pois, o livro Sobre a Páscoa, indica o tempo em que o compôs, nestes termos:
"Sob o procônsul da Ásia Servilio Paulo, tempo em que Sagaris sofreu martírio, houve em Laodicéia muitas disputas sobre a Páscoa, que caía precisamente naqueles dias, e escreveu-se isto."
4.      Este tratado é mencionado por Clemente de Alexandria em seu Sobre a Páscoa, que ele mesmo diz ter composto por causa do escrito de Meliton. E no livrinho dirigido ao imperador conta Meliton que, sob este, deram-se contra nós coisas como estas:
5.      "Pois isto nunca havia ocorrido; agora persegue-se a linhagem dos adoradores de Deus[7], afetados na Ásia por novos editos[8]. Efetivamente, os desavergonhados sicofantas e amantes do alheio, tomando pé nas prescrições, andam roubando abertamente, e expoliam de noite e de dia os que nada fizeram de mal."
6.      E depois de outras coisas diz:
"E se isto é feito porque tu o mandas, está bem-feito, porque nunca um imperador justo poderia querer algo injustamente, e nós suportamos com gosto a honra desta morte. Um só pedido, no entanto, te dirigimos: que tu mesmo examines primeiro os causadores de tal rivalidade e julgues com justiça se são dignos de morte e de castigo, ou de ficar salvos e tranqüilos. Mas se não procedem de ti esta determinação e este novo edito - que nem sequer contra inimigos bárbaros seria conveniente -, com maior razão te pedimos que não nos abandones, indiferente a semelhante latrocínio público."
7.   Ao dito acrescenta ainda isto:
"Efetivamente, nossa filosofia alcançou sua plena maturidade entre bárba­ros, mas havendo-se estendido também a teus povos sob o grande império de teu antepassado Augusto, converteu-se sobretudo para teu reinado em um bom augúrio, pois desde então a força dos romanos cresceu em grandeza e esplendor. Dela és tu o desejado herdeiro e seguirás sendo-o com teu filho, se proteges a filosofia que se criou com o império e começou quando Augusto e teus antepassados inclusive a honraram ao par com as outras religiões.
8.             A prova maior de que nossa doutrina floresceu para bem junto com o Império felizmente iniciado é que, desde o reinado de Augusto nada de mau aconteceu, antes pelo contrário, tudo foi brilhante e glorioso, segundo as preces de todos.
9.             Entre todos, somente Nero e Domiciano, persuadidos por alguns homens malévolos, quiseram caluniar nossa doutrina, e acontece que deles derivou, por costume irracional, a mentira caluniosa contra tais pessoas.
10.  Mas teus pios pais corrigiram a ignorância daqueles repreendendo por escrito muitas vezes todos que se atreveram a criar novidades sobre os cristãos. Entre eles destaca-se teu avô Adriano, que escreveu a muitas e diferentes pessoas, inclusive ao procônsul Fundano, governador da Ásia. E também teu pai escreveu às cidades sobre não inventar nada acerca de nós, inclusive nos tempos em que tudo administravas junto com ele. Entre esses escritos acham-se os dirigidos aos habitantes de Larisa, aos tessalonicenses, aos atenienses e a todos os gregos.
11.      E quanto a ti, que sobretudo nestes assuntos tens o mesmo parecer e até muito mais humano e filosófico, estamos persuadidos de que porás em efeito o que te pedimos."
12.      Isto é o que se diz no tratado mencionado. E nos Extratos por ele escritos, o mesmo Meliton, ao começar, faz no prólogo um catálogo dos escritos admitidos do Antigo Testamento, catálogo que é necessário enumerar aqui. Escreve assim:
13.     "Meliton a seu irmão Onésimo: Saúde. Visto que muitas vezes, valendo-te de teu zelo pela doutrina, tens pedido para ti extratos da lei e dos profetas, sobre o Salvador e toda a nossa fé; mais ainda, já que quiseste saber dos livros antigos com toda exatidão quantos são em número e qual é sua ordem, pus minha diligência em fazê-lo, sabendo de teu ardor pela fé e teu afã de saber sobre a doutrina, já que em tua luta pela salvação eterna e em tua ânsia por Deus, preferes isto mais do que tudo.
14. Assim pois, tendo subido ao Oriente e chegado até o lugar em que se proclamou e se realizou, informei-me com exatidão dos livros do Antigo Testamento. Ordenei-os e envio-os a ti. Seus nomes são: cinco de Moisés: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio; Jesus de Navé, Juízes, Rute; quatro dos Reis, dois dos Paralipômenos; Salmos de Davi; Provérbios de Salomão, ou também Sabedoria, Eclesiastes, Cantar dos Cantares, Jó; dos profetas, Isaías, Jeremias, os doze em um só livro, Daniel, Ezequiel; Esdras. Destes livros tirei os Extratos, que dividi em seis livros." E é isto que há de Meliton.

XXVII  - De Apolinário
1. Sobre Apolinário, por outro lado, ainda que sejam muitas as obras que se conservaram entre muitas pessoas[9], até nós chegaram as seguintes: O Discurso dirigido ao mencionado imperador, cinco livros Contra os gregos, dois Sobre a verdade, dois Contra os judeus, e também os que, depois destes, escreveu Contra a heresia dos frígios, que não muito depois iniciaria suas inovações, mas que já então começava a despontar, pois Montano, junto com suas falsas profetisas, já andava assentando os princípios do descaminho.

XVIII - De Musano
1. E também de Musano, citado em passagens precedentes, conserva-se certo tratado, muito persuasivo, que ele escreveu para alguns irmãos seus que se inclinavam à heresia dos chamados encratitas, que então acabava de nascer e começava a introduzir na vida seu estranho e pernicioso erro.

XXIX - Da heresia de Taciano
1.      Uma tradição sustenta que o autor do descaminho foi Taciano, cujas pala­vras sobre o admirável Justino citamos há pouco, ao fazer constar que foi discípulo do mártir. E isto é demonstrado por Irineu no primeiro livro de sua obra Contra as heresias, onde escreve sobre ele e sua heresia como segue:
2.      "Os chamados encratitas, que procediam de Saturnino e de Márcion, proclamavam a abstenção do matrimônio, rechaçando assim a primitiva criação de Deus e condenado indiretamente aquele que fez o varão e a fêmea[10] para procriar homens. E em sua ingratidão para com o Deus que tudo criou, introduziram também a abstenção do que eles chamam "animado" e negam a salvação do primeiro homem.
3.      Isto mesmo encontramos também agora entre eles, sendo um tal Taciano o primeiro a ter introduzido esta blasfêmia. Foi discípulo de Justino; enquanto conviveu com ele, nada manifestou de tal espécie, mas depois do martírio de Justino, afastou-se da Igreja. Envaidecido pela crença de ser um mestre e inflado por sentir-se diferente dos demais, constituiu um tipo próprio de escola, inventou alguns éons invisíveis - como faziam os seguidores de Valentim -, proclamou o matrimônio como corrupção e fornicação - como fizeram Márcion e Saturnino — e de sua própria invenção negou a salvação de Adão."
4.             Isto é o que Irineu escreveu na ocasião. Mas um pouco mais tarde, um homem chamado Severo deu força à mencionada heresia e foi causa de que os membros da seita recebessem por ele o nome de severianos.
5.             Estes utilizam, é verdade, a lei, os profetas e os Evangelhos, interpretando de maneira peculiar o pensamento das Sagradas Escrituras; mas, blasfemando sobre o apóstolo Paulo, rechaçam suas Cartas e nem sequer aceitam os Atos dos Apóstolos.
6.             Mesmo assim, Taciano, seu primeiro líder, compôs certa combinação e agrupamento - não sei como - dos Evangelhos, ao que deu o nome de Diatessáron e que ainda hoje se conserva entre alguns. E diz-se que teve a ousadia de mudar algumas expressões do apóstolo, alegando completar a correção de seu estilo.
7.      Deixou grande número de escritos, entre os quais muitos citam como o mais famoso o discurso Contra os gregos, no qual menciona os tempos primitivos e manifesta que Moisés e os profetas hebreus são mais antigos que todos os homens famosos dentre os gregos. De fato, parece ser este o mais belo e mais útil de seus escritos. E isto é o que havia sobre estes.

XXX - De Bardesanes o Sírio e das obras que se diz serem suas
1.            Sob o mesmo reinado, multiplicaram-se as heresias na Mesopotâmia, e Bardesanes, homem muito capaz e habilíssimo dialético na língua Siríaca, compôs diálogos contra os marcionitas e contra outros líderes de diferentes crenças e os transmitiu em sua própria língua e escrita junto com muitos outros escritos seus. Seus discípulos - e tinha muitos, subjugados por seu poderoso verbo - traduziram-nos do siríaco para o grego.
2.            Entre eles encontra-se também aquele seu vigorosíssimo Diálogo sobre o destino, dirigido a Antonino, e tudo o mais que, segundo dizem, escreveu devido à perseguição de então.
3.            Inicialmente foi membro da escola de Valentim, mas depois de condená-la e de refutar a maior parte de suas fábulas, pareceu-lhe estar de alguma forma convertido a uma crença mais ortodoxa, ainda que de fato não tenha chegado a limpar-se completamente da antiga heresia.
Também neste tempo morreu Sotero, o bispo da igreja de Roma.[11]

1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui para a sua espiritualidade?




Anexo: 



Primeiro Livro de São Teófilo 
de Antioquia a Autólico

São Teofilo de antioquia

Teófilo de Antioquia (?-186). Teólogo, escritor cristão, apologista e Padre da Igreja que, segundo os dados que chegaram até aos dias de hoje, foi o sexto bispo de Antioquia, da Síria, reinando entre 169 e 188. Esta obra trata-se de uma defesa aos cristãos que continuavam a ser perseguidos no Império Romano. Como era frequente na Antiguidade, Autólico não terá sido uma figura histórica, mas encarna e personaliza um tipo de pessoa pagã que não devia ser rara nos finais do século II: pessoa culta, conhecedora de outras pessoas igualmente cultas e até de alguns cristãos a quem repudiava por achar as suas doutrinas demasiado simplicistas. Nesta obra Teófilo procura, com enorme elegância e clareza de linguagem, debater tais críticas e convidar o seu possível leitor a ousar aprofundar os seus conhecimentos acerca da fé cristã, defendendo, ainda, de modo acérrimo a moral exemplar dos cristãos.

Primeiro Livro a Autólico (São Teófilo de Antioquia)

Capítulo I – Introdução

Boca eloqüente e dicção agradável fornecem prazer e glória fútil de louvor para os pobres homens que têm o entendimento corrompido; o amante da verdade, porém, não se prende a palavras afetadas, mas examina a eficácia da palavra, o que ela é e de que tipo é. Pois bem, meu amigo: tu me causaste estupor com palavras vãs, vangloriando-te dos teus deuses de pedra e madeira cinzelados e fundidos, esculpidos e pintados, deuses que não vêem nem ouvem (de fato, são imagens e obras de mãos humanas); além disso, tu também me chamas zombeteiramente de cristão, como se eu portasse um nome infame. Quanto a mim, confesso que sou cristão e trago esse nome grato a Deus, e espero ser útil ao mesmo Deus. Não há fundamento, para supores que seja difícil ter o nome de Deus; talvez porque, sendo inútil para Deus, tu pensas dessa maneira sobre Deus.

Capítulo II – Condições morais para o conhecimento de Deus

Mas se tu me dizes: “Mostra-me teu Deus”, eu te poderia responder: “Mostra-me teu homem, e eu te mostrarei o meu Deus”. Mostra-me, portanto, os olhos de tua alma que vejam e os ouvidos do teu coração que ouçam. Com efeito, aqueles que vêem com os olhos do corpo observam aquilo que se passa na vida e sobre a terra, discernindo juntamente as diferenças entre a luz e a escuridão, entre o branco e o negro, entre o disforme e a bela forma, entre o que é harmonioso, bem proporcionado e o que é desarmonioso e desproporcional, desmesurado e truncado; a mesma coisa para aquilo que cai sob o sentido dos ouvidos: sons agudos, graves e suaves. Acontece do mesmo modo com os ouvidos do coração e os olhos da alma aos quais é possível perceber Deus. De fato, Deus é experimentado por aqueles que podem vê-lo, desde que os olhos de sua alma estejam abertos. Todos têm olhos, mas alguns os têm obscurecidos e não percebem a luz do sol; e não é porque os cegos não vêem que a luz do sol deixa de brilhar, mas os cegos devem buscar a causa em si mesmos e em seus olhos.

Do mesmo modo, Ó homem, tu tens os olhos de tua alma obscurecidos por tuas faltas e tuas más ações. O homem deve ter alma pura como espelho brilhante. Quando o espelho fica enferrujado, não se pode mais ver a face do homem no espelho; assim também, quando há falta no homem, esse homem já não pode contemplar a Deus. Mostra-te a ti mesmo, se não és adúltero, se não és devasso se não és pederasta, se não és ladrão, se não és explorador, se não és colérico, se não és invejoso, se não és impostor, se não és soberbo, se não és brutal, se não és amante do dinheiro, se não desobedeces a teus pais, se não vendes teus filhos. Com efeito, Deus não se manifesta àqueles que cometem essas faltas, a não ser que antes se purifiquem de toda mancha. Por isso, tudo é obscuro para ti, como a bandagem que se coloca no olho por não poder contemplar a luz do sol. Assim também, ó homem, tuas impiedades projetam sobre ti trevas e tu não podes ver a Deus.

Capítulo III – Transcendência de Deus

Então me dirás: “Tu que vês, descreve-me o aspecto de Deus”. Escuta, homem: o aspecto de Deus é inefável, inexprimível, e não pode ser visto com os olhos carnais. Por sua glória, ele é sem limite, inigualável por sua grandeza, acima de qualquer idéia por sua altura, incomensurável por sua força, sem igual por sua sabedoria, inimitável por sua bondade, indizível por sua benevolência. Se eu o chamo Luz, é uma de suas criaturas que nomeio; se eu o chamo Verbo, nomeio o seu princípio; seu eu o chamo Razão, nomeio a sua inteligência; se eu o chamo Espírito, nomeio a sua respiração; se eu o chamo Sabedoria, nomeio o que ele gera; se eu o chamo Força, nomeio o seu poder; se eu o chamo Potência, nomeio a sua atividade; se eu o chamo Providência, nomeio a sua bondade; se eu o chamo Soberania, nomeio a sua glória; seu eu o chamo Senhor, digo que é juiz; se eu o chamo Juiz, digo que é justo; se eu o chamo Pai, digo que é tudo; se o chamo Fogo, nomeio a sua ira. Tu me dirás: “Deus fica irado?” Eu respondo: Sim, ele se ira contra aqueles cujas ações são más; no entanto, ele é bom, propício e misericordioso para com aqueles que o amam e o temem; ele é o educador dos fiéis, o pai dos justos, o juiz e castigador dos ímpios.

Capítulo IV – A soberania de Deus

Ele não tem princípio, porque não foi gerado; ele é imutável, porque é imortal. É chamado Deus porque fundou tudo sobre sua própria estabilidade, e ainda através de théein. Théein significa correr, ser ativo, trabalhar, alimentar, prover, governar, dar vida a tudo. Ele é Senhor, porque exerce o senhorio sobre tudo; Pai, porque existe antes de tudo; Fundador e Criador, porque ele criou e fez tudo; Altíssimo, porque ele é superior a todas as coisas; Onipotente, porque ele domina e envolve tudo. As alturas dos céus, as profundezas dos abismos, e os confins da terra estão em sua mão; não há lugar onde esteja suspensa a sua ação. Os céus são obra sua; a terra é realização sua; o mar é criação sua; o homem é figura e imagem sua; o sol, a lua e as estrelas são elementos seus, feitos para medir sinais, medida de tempo, dias e anos, para utilidade e serviço dos homens. E Deus fez tudo do não-ser para o ser, a fim de que por suas obras seja conhecida e compreendida a sua grandeza.

Capítulo V – Condições intelectuais para o conhecimento de Deus

Do mesmo modo como a alma não pode ser vista no homem, pois ela é invisível para os homens, mas pode ser imaginada por causa dos movimentos do corpo, assim também acontece com Deus: ele não pode ser visto pelos olhos humanos, mas pode ser visto e imaginado pela sua providência e pelas suas obras. Quando alguém vê no mar um navio com todo o seu apetrecho, que singra e se aproxima do porto, é evidente que pensa que há um piloto que o dirige; do mesmo modo, deve-se pensar que existe um Deus, que governa tudo, embora os olhos carnais não o vejam, porque ele não é circunscrito. Se o sol, que é o menor elemento existente, não pode ser fixado pelo olhar humano, pois é muito quente e muito forte, como não será muito mais impossível ao homem mortal ver face a face a glória inefável de Deus? A romã possui uma casca que a envolve; dentro tem muitas repartições ou casinhas separadas por membranas e, finalmente, muitos grãos aí alojados. Do mesmo modo, toda a criação está envolvida pelo sopro de Deus, e esse sopro que a envolve está com a criação pela mão de Deus.

Assim como o grão da romã, do interior de seu habitáculo, não pode ver o que está fora da casca, pois está lá dentro, também o homem, que é envolvido com toda a criação pela mão de Deus, não pode contemplar a Deus. Além disso, crê-se que um soberano terrestre existe, embora ninguém o veja: suas leis, seus editos, seus funcionários, suas autoridades, suas estátuas o tornam conhecido. E tu não queres reconhecer Deus pelas suas obras e manifestações de seu poder?

Capítulo VI – Condições intelectuais para o conhecimento de Deus (cont.)

Ó homem, considera, portanto, as obras de Deus: a variedade das estações segundo os tempos, a mudança dos ares, o curso bem regrado dos elementos, a marcha também ordenada dos dias e das noites, dos meses e dos anos; a variada formosura das sementes, das plantas e dos frutos; a grande diversidade de criações: quadrúpedes e aves, répteis e peixes, seja de água doce, seja do mar; o instinto dado aos mesmos animais para gerar e criar, não para sua própria utilidade, mas para que o homem aproveite; a providência com que Deus prepara o alimento para toda carne, a submissão à humanidade que ele impôs a todas as coisas; as torrentes das fontes doces e dos rios perenes, o aparecimento oportuno do orvalho, das chuvas e das tempestades que acontecem segundo os tempos; o movimento tão variado dos elementos celestes, o luzeiro da manhã que surge para anunciar a vinda do grande astro, a conjunção da Plêiade e do Órion, o Arturo e o coro dos outros astros que circulam na abóbada celeste, aos quais a infinita sabedoria de Deus pôs nomes próprios.

É unicamente esse Deus que tirou a luz das trevas, que tira a luz de seus depósitos, que conserva os depósitos do vento, os reservatórios do abismo, os limites dos mares, os depósitos das neves e granizos, que junta as águas nos reservatórios do abismo ejunta as trevas em seus depósitos, tira a luz doce, desejada e grata, de seus depósitos, faz subir as nuvens da extremidade da terra, multiplica os relâmpagos para chover, envia o trovão para infundir medo, anuncia de antemão o seu estrondo por meio do relâmpago, para que a alma não sofra emoção súbita que a deixaria inanimada, e ainda modera a força do relâmpago que vem dos céus, para que não abrase a terra. De fato, se o relâmpago desenvolvesse todo o seu poder, abrasaria a terra e igualmente o trovão transtornaria tudo o que há nela.

Capítulo VII – Condições intelectuais para o conhecimento de Deus (cont.)

Esse é o meu Deus, Senhor do universo, o Único que estendeu os céus e estabeleceu a largura da terra sob o céu, que perturba a profundeza do mar e faz ressoar suas ondas, que domina a sua força e acalma a agitação de suas ondas, que alicerçou a terra sobre as águas e deu seu espírito que a alimenta, cujo sopro tudo vivifica e, se ele o retivesse, tudo desfaleceria. Esse sopro, ó homem, faz a tua voz; tu respiras o espírito dele, e tu não o conheces. Isso acontece por causa da cegueira de tua alma e endurecimento do teu coração. Mas, se quiseres, podes curar-te. Coloca-te nas mãos do médico e ele operará os olhos de tua alma e do teu coração. Quem é esse médico? É Deus que cura e vivifica através do Verbo e da Sabedoria. Deus fez tudo a través do seu Verbo e da sua Sabedoria. Por seu Verbo foram estabelecidos os céus e por seu Espírito toda a força deles. Sua Sabedoria é poderosíssima. Por sua Sabedoria, Deus colocou os alicerces da terra, por sua inteligência dispôs os céus, em sua prudência os abismos se abriram e as nuvens derramaram o orvalho. Fé e visão Ó homem, se compreenderes isso, e viveres de maneira pura, piedosa e justa, poderás ver a Deus. Antes de tudo, porém, entrem em teu coração a fé e o temor de Deus, e então compreenderás isso. Quando depuseres a mortalidade e te revestires da incorruptibilidade, verás a Deus de maneira digna. Com efeito, Deus ressuscitará a tua carne, imortal, juntamente com tua alma. Então, tornado imortal, verás o imortal, contanto que agora tenhas fé nele. Então reconhecerás que falaste injustamente contra ele.

Capítulo VIII – Crer na ressurreição é razoável

Tu, porém, não crês que os mortos ressuscitam. Quando isso acontecer, então crerás, queiras ou não. E essa crença será considerada incredulidade, se não creres desde agora. Mas, por que não crês? Não sabes que a fé vai à frente de todas as coisas? De fato, qual lavrador pode colher, se antes não confia a semente à terra? Ou quem pode atravessar ornar, se antes não se confia à embarcação e ao piloto? Qual doente pode curar-se, se antes não se confia ao médico? Qual arte ou ciência pode alguém aprender, se antes não se entrega e se confia ao mestre? Portanto, se o lavrador crê na terra, o viajante no navio, o doente no médico, por que tu não queres confiar-te a Deus, do qual recebeste tantos dons? O primeiro dom é te haver tirado do nada para o ser. Se houve momento em que nem teu pai, nem tua mãe existiam, muito menos existias tu. Ele te plasmou de uma substância úmida e pequena e de uma pequenina gota, que também não existia antes, e finalmente te introduziu neste mundo. Além disso, crês que as imagens fabricadas por homens são deuses e que operam prodígios, e não crês que Deus, que te fez, possa novamente tornar a fazer-te?

Capítulo XIX – Vós credes em outros deuses

Os nomes dos deuses, aos quais dizes cultuar, são nomes de homens mortos. Quem eram esses e que valiam? Não se diz que Cronos era comedor de crianças e que devorava seus próprios filhos? Se falas de Zeus, filho dele, conheças bem sua vida e prodígios. Primeiramente, foi alimentado no Ida por uma cabra; depois, matando-a e esfolando-a, da pele fez para si, conforme as fábulas, uma vestimenta. Seus outros feitos, como, por exemplo, seu casamento com sua irmã, seus adultérios e corrupções de rapazes, Homero e os outros poetas os cantam melhor do que eu. Além disso, para que fazer a lista de seus filhos, um Héracles que se queima vivo; um Dioniso embriagado e louco; um ApoIo que tem medo de Aquiles e dele foge, e depois se enamora de Dafne e não fica sabendo da morte de Jacinto; uma Afrodite ferida; um Ares que é perdição dos mortais e, finalmente, o sangue que escorre de todos esses pretensos deuses? E isso tudo ainda é moderado, quando vemos um deus esquartejado que chamam de Osíris, do qual a cada ano se celebram mistérios, como se se perdesse e se encontrasse e fosse procurado membro por membro. Não se sabe se foi perdido, nem se mostra se foi achado! Por que devo falar de Átis mutilado, ou de Adônis, que anda errante pela selva, que caça e é ferido por um javali, ou de Asclépio fulminado, ou de Serápis, que vai fugitivo de Sínope para Alexandria, ou da frígia Artemis, tonta, fugitiva, assassina, caçadora e enamorada de Eudimião? Não somos nós que dizemos tudo isso, mas os vossos escritores e poetas que os apregoam.

Capítulo X – Vós credes em outros deuses (cont.)

Para que também fazer o catálogo da multidão de animais que os egípcios cultuam? Répteis e bestas, feras e aves, peixes das águas, e até os banhos dos pés e os ruídos vergonhosos. Se me falas dos gregos e das outras nações, elas cultuam pedras, madeiras e outras matérias, como dissemos antes, que são representações de homens mortos. Com efeito, sabemos que Fídias fez em Pisa o Zeus Olímpico para os éleos e a Atena da Acrópole para os atenienses. E agora, eu pergunto também a ti, homem: Quantos Zeus existem? Em primeiro lugar, chama-se Zeus o olímpico; depois, há um Zeus latino, um Zeus cássio, um Zeus fulminador, um Zeus Propator, um Zeus noturno, um Zeus defensor da cidade, um Zeus capitolino. E ainda o Zeus, filho de Cronos, que foi rei dos cretenses e tem sua sepultura em Creta. Quanto aos outros, não foram sequer considerados dignos de sepultura. Falar-me-ás da mãe dos pretensos deuses? Deus me livre nomear com minha boca suas ações, pois não nos é lícito sequer nomear tais coisas, ou as ações com que seus servidores lhe prestam culto e as contribuições e tributos que eles e seus filhos pagam ao imperador. Não são deuses, mas ídolos, como anteriormente dissemos, obras das mãos dos homens e demônios impuros. Que aqueles que os fabricam se tornem como eles e aqueles que neles põem a sua confiança.

Capítulo XI – Atitude para com o imperador

Por isso, eu honraria melhor ao imperador, embora não o adorasse, mas rogasse por ele. Adorar, eu adoro apenas ao Deus real e verdadeiramente Deus, pois sei que o imperador foi criado por ele. Então me perguntarás: “Por que não adoras o imperador?” Porque não foi constituído para ser adorado, mas para que se lhe tribute a legítima honra. Com efeito, ele não é Deus, mas homem estabelecido por Deus, não para ser adorado, mas para julgar com justiça. De certo modo, Deus lhe confiou uma administração e assim como ele próprio não quer que se chame de imperadores os que ele estabeleceu sob o seu poder, pois o nome “imperador” é particular seu, e a ninguém é permitido chamar-se dessa forma, da mesma forma a ninguém é lícito adorar senão a Deus. Portanto, ó homem, estás completamente equivocado em tudo. Honra ao imperador por tua adesão a ele, submetendo-te a ele, orando por ele. Fazendo isso, realizarás a vontade de Deus. A lei divina diz: “Meu filho, honra a Deus e ao rei, e não sejas desobediente a nenhum dos dois, pois eles se vingarão repentinamente de seus inimigos”.

Capítulo XII – O nome de cristão

Quanto ao fato de zombares de mim, chamando-me cristão, não sabes o que dizes. Primeiramente, o ungido é agradável e útil, e não tem nada de ridículo. Com efeito, qual navio pode ser útil e salvo se antes não for ungido? Que torre ou casa possui bela forma ou é útil se antes não for ungida? Qual homem, entrando no mundo ou indo ao combate, não se unge com azeite? Qual obra ou ornato pode ter bela aparência, se não é ungida e não se torna brilhante? Por fim, todo o ar e toda a terra sob o céu são de certo modo ungidos pela luz e pelo vento. E tu não queres ser ungido com o óleo de Deus? Nós nos chamamos cristãos porque nos ungimos com o óleo de Deus.

Capítulo XIII – Imagens da ressurreição na natureza

Retornemos à tua negação da ressurreição dos mortos. Tu dizes: “Mostra-me apenas um morto que tenha ressuscitado e eu acreditarei.” Em primeiro lugar, o que há de maravilhoso em creres naquilo que viste acontecer? Por outro lado, crês que Héracles, depois de queimar-se vivo, ainda vive, e que Asclépio, que foi fulminado, ressuscitou. E não crês no que Deus te diz? Talvez, se te mostrasse um morto ressuscitado e vivo, não acreditarias. Ora, Deus te mostra muitos indícios, para que creias nele. Se queres, considera a morte das estações, dos dias e das noites, como morrem e ressuscitam. Vê. Não há também uma ressurreição para as sementes e frutos, e isso para a utilidade dos homens? Assim, por exemplo, um grão de trigo ou de qualquer outra planta, uma vez jogado na terra, primeiro morre e se desfaz, depois ressuscita e se transforma em espiga. Do mesmo modo, segundo a ordenação de Deus, a natureza das árvores e plantas não produz, conforme os tempos, os seus frutos a partir do oculto e invisível? Ainda mais: às vezes um pardal ou outro pássaro qualquer engole a semente de uma pereira, de uma figueira ou de outra árvore, depois voa para um monte pedregoso ou sobre um túmulo, aí defeca e a semente que fora antes tragada e que passara por tão grande calor, retorna e se transforma em uma árvore.

A sabedoria de Deus realiza tudo isso para demonstrar, mesmo por esses exemplos, que ele é Deus poderoso para realizar a universal ressurreição de todos os homens. Se queres contemplar um espetáculo mais maravilhoso, que acontece para demonstrar não a ressurreição de coisas terrenas, mas das celestes, considera a ressurreição da lua, que acontece a cada mês, como ela se consome, morre e ressuscita novamente. Escuta ainda: a obra da ressurreição se realiza em ti mesmo, embora tu, ó homem, a desconheças. Provavelmente alguma vez, ficando doente, perdeste tuas carnes, tuas forças e aparência; ao recobrar a saúde, por misericórdia de Deus, recuperaste novamente teu corpo, tua força e tua aparência. E como não sabes para onde foram tuas carnes ao desvanecer-se, também não sabes como se formaram e de onde vieram. Tu dirás: “Dos alimentos e dos líquidos transformados em sangue”. Muito bem! Isso, porém, também é obra de Deus, que assim dispôs, obra dele e de nenhum outro.

Capítulo XIV – Exemplo pessoal de Teófilo

Portanto, não sejas incrédulo, mas acredita. Eu também não acreditava que isso existisse, mas agora, depois de refletir muito, eu creio; ao mesmo tempo, li as Sagradas Escrituras dos santos profetas, os quais, inspirados pelo Espírtio de Deus, predisseram o passado como aconteceu, o presente tal como acontece e o futuro tal como se cumprirá. Por isso, tendo a prova das coisas acontecidas depois de terem sido preditas não sou incrédulo, mas creio e obedeço a Deus. Eu te peço: submete-te também a ele, para que, não crendo agora, forçosamente tenhas que crer mais tarde em tormentos eternos. Exortação final Esses tormentos foram preditos pelos profetas, e os poetas e filósofos, posteriores a eles, os imitaram a partir das Sagradas Escrituras, para dar autoridade aos seus ensinamentos. Desse modo, eles também falaram antecipadamente dos castigos que recairão sobre os ímpios e incrédulos, para que ficassem testemunhados para todos e ninguém pudesse dizer: “Não ouvimos falar disso, nem sabemos”. Se queres, lê tu também com interesse as Escrituras dos profetas e elas te guiarão com mais clareza para escapares dos castigos eternos e alcançares os bens eternos de Deus. De fato, ele, que nos deu a boca para falar, que formou o ouvido para ouvir e fez os olhos para ver, examinará tudo e julgará com justiça, dando a cada um segundo os próprios méritos. Para aqueles que, segundo suas forças, buscam a incorruptibilidade através das boas obras, ele dará a vida eterna, a alegria, a paz, o descanso e uma multidão de bens, que nenhum olho viu, nenhum ouvido e nenhum coração humano sentiu; mas aos incrédulos, aos zombadores e aos que desobedecem à verdade e seguem a injustiça, depois de manchar-se com adultérios, fornicações, pederastias, avarezas e sacrílegas idolatrias, para esses, existirá a ira e a indignação, a tribulação e a angústia, e, por fim o fogo eterno se apoderará deles.

Amigo, tu replicaste: “Mostra-me teu Deus”. Pois bem: esse é o meu Deus, e te aconselho que o temas e creias nele.

[1] Este livro está no BLOG da OESI.
[2] Exceto pelos três livros A Autólico, todos seus livros se perderam.
[3] Nada se sabe sobre os tratados de Felipe e de Modesto Contra Márcion. Perderam-se assim como os de Justino.
[4] Um dos manuscritos dá o título Sobre a natureza do homem.
[5] Neste ponto do manuscrito aparecem sete letras que não fazem sentido e são interpre­tadas de diferentes formas por diversos estudiosos.
[6] Pode tratar-se de uma repetição do título citado acima ou de uma obra distinta.
[7] Procedimento contrário às ordem de Trajano.
[8] Não se tem notícia de tais editos contra os cristãos, pode ser uma referência às deci­sões de Marco Aurélio contra os que propagavam novas crenças, não especificamente contra os cristãos.
[9] Exceto pelo que é dito nesta obra, nada sabemos sobre Cláudio Apolinário, bispo de Hierápolis. Todas as suas obras foram perdidas.
[10] Gn 1:27.
[11] Termina aqui o livro IV no total de 10 livros de Eusébio sobre a História Eclesiástica.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Livro IV - Capítulos 19-23

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História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia
Livro IV - Capítulos 19 a 23

Texto Bíblico: II Tm 2.2

XIX - Quem esteve frente à frente das igrejas de Roma e de Alexandria sob o reinado de Vero
1. Havia avançado já até seu oitavo ano o reinado mencionado[1] quando Sotero sucedeu Aniceto no episcopado da igreja de Roma, tendo este passado nele onze anos completos. O da igreja de Alexandria, depois de presidida por Celadion durante catorze anos, passou a seu sucessor, Agripino.

XX - Quem esteve à frente da igreja de Antioquia
1. Na igreja de Antioquia conhecia-se como sexto sucessor dos apóstolos a Teófilo. O quarto havia sido Cornélio, instituído sobre ela depois de Heron[2]. E depois de Cornélio, em quinto lugar Eros havia recebido em sucessão o episcopado.

XXI - Dos escritores eclesiásticos que brilharam naquele tempo
1. Por estes tempos[3] florescia na igreja Hegesipo, a quem já conhecemos pelo que foi dito anteriormente; também Dionísio, bispo de Corinto, e Pinito, bispo por sua vez dos fiéis de Creta. E além destes, Felipe, Apolinário, Meliton Musano, Modesto e, sobre todos, Irineu. Deles chegou até nós por escrito a ortodoxia da santa fé da tradição apostólica.

XXII - De Hegesipo e dos que ele menciona
1.            Assim é, pois, que Hegesipo deixou-nos um monumento completíssimo de seu próprio pensamento nos cinco livros de Memórias que chegaram a nós. Neles mostra como, realizando uma viagem a Roma, esteve em contato com muitos bispos e como de todos eles recebeu uma mesma doutrina. Será bom escutá-lo, depois que disse algumas coisas sobre a Carta de Clemente aos Coríntios, acrescentar o seguinte:
2.            "E a igreja dos Coríntios permaneceu na reta doutrina até que Primo foi bispo de Corinto. Quando eu navegava para Roma, convivi com os Coríntios e com eles passei muitos dias, durante os quais me reconfortei com sua reta doutrina.
3.     E chegado a Roma, fiz-me uma sucessão até Aniceto, cujo diácono era Eleutério. A Aniceto sucedeu Sotero, e a este, Eleutério. Em cada sucessão e em cada cidade as coisas estão tal como pregam a lei, os profetas e o Senhor."
4.   O mesmo escritor nos explica o início das heresias de seu tempo nestes termos:
"E depois que Tiago o Justo sofreu o martírio, o mesmo que o Senhor e pela mesma razão, seu primo Simeão, o filho de Clopas, foi constituído bispo. Todos o haviam proposto, por ser o outro primo do Senhor. Por esta causa[4] chamavam virgem à Igreja, pois ainda não havia se corrompido com vãs tradições.
5.             "Mas foi Tebutis, por não ter sido nomeado bispo, que começou a corrompê-la, partindo das sete seitas que havia no povo, das quais também ele for­mava parte. Delas saíram Simão - daí os simonianos -, Cleobio - donde saíram os cleobinos -, Dositeo - donde os dositanos -, Gorteo - de onde os goratenos - e os masboteus. Destes procederam os menandristas, os marcianistas, os carpocratianos, os valentinianos, os basilidianos e os saturnilianos. Cada um destes introduziu sua própria opinião por caminhos próprios e diferentes.
6.             Deles saíram pseudocristos, pseudoprofetas e pseudoapóstolos, que despedaçaram a unidade da Igreja com suas doutrinas corruptoras contra Deus e contra seu Cristo."
7.   O mesmo autor descreve ainda inclusive as seitas que houve em outro tempo entre os judeus, dizendo:
"Existiam diferentes opiniões na circuncisão, entre os filhos dos israelitas, contra a tribo de Judá e contra o Cristo, a saber: essênios, galileus, hemerobatistas, masboteus, Samaritanos, Saduceus e fariseus."
8.             Escreveu também muitas outras coisas, das quais fizemos menção anterior­mente, em parte, ao dispor as narrativas conforme as circunstâncias. Põe algumas coisas tomadas do Evangelho dos hebreus e do Siríaco, e em par­ticular tomadas da língua hebraica, mostrando assim que se fez crente sendo hebreu. E não apenas isto mas também menciona outras coisas procedentes de uma tradição judia não escrita.
9.             Mas não somente ele, pois também Irineu e todo o coro dos antigos chamavam os Provérbios de Salomão "Sabedoria toda virtuosa". E ao decidir sobre os livros chamados apócrifos conta que alguns deles foram fabricados em seu tempo por alguns hereges[5].
Mas já é hora de passar a outro.

XXIII - De Dionísio, bispo de Corinto, e das cartas que escreveu
1.            Sobre Dionísio, o primeiro que temos a dizer é que foi-lhe confiado o trono do episcopado da igreja de Corinto, e também que suas atividades divinas influenciaram abundantemente não apenas os que estavam sujeitos a ele, mas também os de outros países, sendo utilíssimo a todos com suas cartas católicas que compunha para as igrejas.
2.            Uma delas, Aos Lacedemonios, é uma catequese de ortodoxia e exorta à paz e à união; outra, Aos Atenienses, é uma chamada à fé e a uma conduta conforme o Evangelho; aos que descuidam desta, repreende-os por estarem a ponto de apostatar da doutrina, precisamente desde que seu presidente, Publio, sofreu martírio nas perseguições de então.
3.            Menciona que Codrato foi nomeado seu bispo depois do martírio de Publio, e atesta ainda que, graças a seu zelo, voltaram eles a se unir e reavivaram sua fé. Em continuação mostra que Dionísio o Areopagita, depois de convertido à fé por Paulo, segundo o exposto nos Atos, foi o primeiro a quem se confiou o episcopado da igreja de Atenas.
4.     Existe outra carta sua aos fiéis de Nicomedia, na qual combate a heresia de Márcion e compara-a com a regra da verdade.
5.            E quando escreve à igreja que peregrina em Gortina, em vez de às outras igrejas de Creta, felicita seu bispo Felipe porque a igreja que tem a seu cargo deu testemunho com suas numerosíssimas virtudes e adverte-os de que se guardem da perversão dos hereges.
6.            E escrevendo à igreja que peregrina em Amastris, em vez das do Ponto, recorda que Baquílides e Elpisto haviam-no animado a escrever, apresenta algumas interpretações das divinas Escrituras e dá a seu bispo o nome de Palmas. Sobre o matrimônio e a continência dirige-lhes não poucas exorta­ções e ordena-lhes acolher aos que se convertem de qualquer queda, seja devida à negligência, seja a erro herético[6].
7.      Entre estas cartas acha-se catalogada outra, aos de Knosos, na qual exorta Pinito, bispo daquela igreja, a não impor aos irmãos obrigatoriamente o pesado fardo da continência, mas antes a ter consideração com a fraqueza dos demais[7].
8.      Respondendo a esta carta, Pinito rende admiração e aprova Dionísio; mesmo assim, exorta-o por sua vez a que reparta um alimento mais sólido e sustente o povo a ele confiado com escritos mais perfeitos, para que ao final, depois de haver passado todo o tempo em palavras semelhantes ao leite, não venham a envelhecer, sem dar-se conta, em uma conduta pueril[8]. Por esta carta fica manifesta, como numa imagem acabada, a ortodoxia de Pinito quanto à fé, sua preocupação pelo proveito dos ouvintes, sua eloqüência e sua compreensão das coisas de Deus.
9.             Existe ainda outra carta de Dionísio, Aos Romanos, dirigida ao bispo de então, Sotero. Nada melhor do que citar dela as frases em que o autor aprova o costume romano, observado até a perseguição de nossos dias, quando escreve:
10.  "Porque desde o princípio tendes este costume, o de fazer o bem de muitas maneiras a todos os irmãos e enviar provisões por cada cidade a muitas igrejas; remediais assim a pobreza dos necessitados e, com as provisões que desde o princípio estais enviando, atendeis aos irmãos que se encontram nas minas, conservando assim, como romanos que sois, um costume roma­no transmitido de pais a filhos, costume que vosso bem-aventurado bispo Sotero não somente manteve, mas até melhorou, ministrando por um lado socorros abundantes para enviar aos santos, e por outro, como pai que ama ternamente os seus, consolando com afortunadas palavras os irmãos que chegam a ele."
11.      Na mesma carta menciona também a de Clemente Aos Coríntios, mostrando que se vinha fazendo a leitura da mesma na igreja desde tempos atrás por antigo costume; diz assim:
"Hoje pois, celebramos o dia santo do Senhor e lemos vossa carta. Conti­nuaremos lendo-a de vez em quando para admoestação nossa, tanto quanto a primeira que nos foi escrita por meio de Clemente."
12. E o mesmo, falando ainda de suas próprias cartas, que haviam sido falsi­ficadas, diz o seguinte:
"Eu escrevi efetivamente algumas cartas depois que alguns irmãos pediram que as escrevesse. Mas estes apóstolos do diabo encheram-nas de joio[9], suprimindo umas coisas e acrescentando outras. Sobre eles pesa o 'Ai de vós!'[10]. Na verdade não se deve estranhar que alguns também tenham se lançado sobre as Escrituras do Senhor, para falsificá-las, quando conspiraram até contra as que não são tão importantes."
13. E além destas, há ainda outra carta de Dionísio que escreve A Crisófora[11], irmã cheia de fé. A esta escreve o que lhe corresponde e fornece o alimento espiritual adequado.
Isto é o que tange a Dionísio.

1.                  O que mais te chamou a atenção neste texto?
2.                  O que o texto contribui para a sua espiritualidade?





[1] Isto é, o ano 168-169.
[2] Sucessor de Inácio (vide III:36:14).
[3] São os tempos de Marco Aurélio.
[4] A causa não se refere à frase anterior, mas à argumentação sobre a origem das heresias.
[5] Não se sabe a quais apócrifos e a quais hereges se refere.
[6] Márcion era natural cio Ponto, daí o cuidado especial para com as heresias.
[7] At 15:28.
[8] 1 Co 3:1-2; Hb 5:12-14.
[9] Mt 13:25.
[10] Ap 22:18-19.
[11] Desconhecida.