sábado, 26 de dezembro de 2015

Leão Magno - Sermão n° 23 - "Natal do Senhor"


Leão Magno
Sermão n° 23: «Natal do Senhor»
(P.L. 54, 199 ss)
á muitas vezes, caríssimos, ouvistes falar e fostes instruídos a respeito do mistério da solenidade de hoje; porém, assim como a luz visível enche sempre de prazer os olhos sadios, também aos corações retos não cessa de causar regozijo a natividade do Senhor.
Jamais devemos deixá-la transcorrer em silêncio, embora não possamos condignamente explaná-la, pois aquela palavra: "a sua geração, quem a poderá explicar?" 1 se refere certamente não só ao mistério pelo qual o Filho de Deus é co-eterno com o Pai, mas ainda a este nascimento em que "o Verbo se fez carne" 2.
O Filho de Deus, que é Deus como seu Pai, que recebe do Pai sua mesma natureza, Criador e Senhor de tudo, que está presente em toda parte e transcende o universo inteiro, na seqüência dos tempos que, de sua providência dependem, escolheu para si este dia, a fim de, em prol da salvação do mundo, nele nascer da bem-aventurada Virgem Maria, conservando intacto o pudor de sua mãe. A virgindade de Maria não foi violada no parto, como não fora maculada na conceição, "a fim de que se cumprisse - diz o evangelista - o que foi pronunciado pelo Senhor, através do profeta Isaías: Eis que uma virgem conceberá no seu seio e dará à luz um filho, ao qual chamarão Emanuel, que quer dizer Deus conosco" 3.
O admirável parto da sagrada Virgem trouxe à luz uma pessoa que, em sua unicidade, era verdadeiramente humana e verdadeiramente divina, já que as duas naturezas não conservaram suas propriedades de modo tal que se pudessem distinguir como duas pessoas: não foi apenas ao modo de um Habitador em seu habitáculo que o Criador assumiu a sua criatura, mas, ao contrário, uma natureza como que se adicionou à outra. Embora duas naturezas, uma a assumente e outra assumida, é tal a unidade que formam, que um único e mesmo Filho poderá dizer-se, enquanto verdadeiro homem, menor que o Pai 4 e enquanto verdadeiro Deus, igual ao Pai 5.
Uma unidade dessas, caríssimos, entre Criador e criatura, o olhar cego dos arianos não pôde entender, os quais, não crendo que o Unigênito de Deus possua a mesma glória e substância do Pai, afirmaram ser menor a divindade do Filho, argumentando com as palavras (evangélicas) que dizem respeito à forma de servo 6.
Ora, o próprio Filho de Deus, para mostrar como essa condição de servo nele existente não pertence a uma pessoa estranha e distinta, com ela mesma nos diz: "eu e o Pai somos uma só coisa" 7
Na natureza de servo, portanto, que ele, na plenitude dos tempos, assumiu em vista da nossa redenção, é menor do que o Pai; mas na natureza de Deus, na qual existia desde antes dos tempos, é igual ao Pai. Em sua humildade humana, foi feito da mulher, foi feito sob a Lei 8, continuando a ser Deus, em sua majestade divina, o Verbo divino, por quem foram feitas todas as coisas 9. Portanto, aquele que, em sua natureza de Deus, fez o homem, revestiu uma forma de servo, fazendo-se homem; é o mesmo o que é Deus na majestade desse revestir-se e homem na humildade da forma revestida. Cada uma das naturezas conserva integralmente suas propriedades: nem a de Deus modifica a de servo, nem a de servo diminui a de Deus. O mistério, pois, da força unida à fraqueza, permite que o Filho, em sua natureza humana, se diga menor do que o Pai, embora em sua natureza divina lhe seja igual, pois a divindade da Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo é uma só. Na Trindade o eterno nada tem de temporal, nem existe dissemelhança na divina natureza: lá a vontade não difere, a substância é a mesma, a potência igual, e não são três Deuses, unidade verdadeira e indissociável é essa, onde não pode existir diversidade.
Nasceu pois numa natureza perfeita e verdadeira de homem o verdadeiro Deus, todo no que é seu e todo no que é nosso. "Nosso" aqui dizemos que o Criador criou em nós no início, e depois assumiu para restaurar. O que, porém, o sedutor (o demônio) introduziu e o homem, ludibriado, aceitou, isso não teve nem vestígio no Salvador, pois comungando com nossas fraquezas não participou dos nossos delitos. Elevou o humano sem diminuir o divino, dado que a exinanição em que o Invisível se nos mostrou visível foi descida de compaixão, não deficiência de poder.
Assim, para sermos novamente chamados dos grilhões originais e dos erros mundanos à eterna bem-aventurança, aquele mesmo a quem não podíamos subir desceu até nós. Se, realmente, muitos eram os que amavam a verdade, a astúcia do demônio iludia-os na incerteza de suas opiniões, e sua ignorância, ornada com o falso nome de ciência, arrastava-os a sentenças as mais diversas e opostas. A doutrina da antiga Lei não era bastante para afastar essa ilusão que mantinha as inteligências no cativeiro do soberbo demônio. Nem tampouco as exortações dos profetas lograriam realizar a restauração de nossa natureza. Era necessário que se acrescentasse às instituições morais uma verdadeira redenção, necessário que uma natureza corrompida desde os primórdios renascesse em novo início. Devia ser oferecida pelos pecadores uma hóstia ao mesmo tempo participante de nossa estirpe e isenta de nossas máculas, a fim de que o plano divino de remir o pecado do mundo por meio da natividade e da paixão de Jesus Cristo atingisse as gerações de todos os tempos e, longe de nos perturbar, antes nos confortasse a variação dos mistérios no decurso dos tempos, desde que a fé, na qual hoje vivemos, não variou nas diversas épocas.
Cessem, por isso, as queixas dos que impiamente murmuram contra a divina providência e censuram o retardo da natividade do Senhor, como se não tivesse sido concedido aos tempos antigos o que se realizou na última idade do mundo. A Encarnação do Verbo podia conceder, já antes de se realizar, os mesmos benefícios que outorga aos homens, depois de realizada; o ministério da salvação humana nunca deixou de se operar. O que os apóstolos pregaram, os profetas prenunciaram; não foi cumprido tardiamente aquilo a que sempre se prestou fé. A sabedoria, porém, e a benignidade de Deus, cem essa demora da obra salutífera, nos fez mais capazes de nossa vocação, pois o que fora prenunciado por tantos sinais, tantas vezes e tantos mistérios, poderíamos reconhecer sem ambigüidade nestes dias do Evangelho. A natividade, mais sublime do que todos os milagres e do que todo o entendimento, geraria em nós uma fé tanto mais firme quanto mais antiga e amiudada tivesse sido antes sua pregação. Não foi, pois, por deliberação nova ou por comiseração tardia que Deus remediou a situação do homem, mas, desde a Criação do mundo instituíra uma e mesma causa de salvação, para todos. A graça de Deus, que justifica os santos, foi aumentada com o nascimento de Cristo, não foi simplesmente principiada. E esse mistério da compaixão, esse mistério que hoje já enche o mundo, fora tão potente em seus sinais prefigurativos que todos os que nele creram, quando prometido, não conseguiram menos do que os que o conheceram realizado.
São assim, caríssimos, tão grandes os testemunhos da bondade divina para conosco que, para nos chamar à vida eterna, não apenas nos ministrou as figuras, como aos antigos, mas a própria Verdade nos apareceu, visível e corpórea. Não seja, portanto, com alegria profana ou carnal que celebremos o dia da natividade do Senhor. celebra-lo-emos dignamente se nos lembrarmos, cada um de nós, de que Corpo somos membros e a que Cabeça estamos unidos, cuidando que não se venha a inserir no sagrado edifício uma peça discordante.
Considerai atentamente, caríssimos, sob a luz do Espírito Santo, quem nos recebeu consigo e quem recebemos conosco: sim, como o Senhor se tornou carne nossa, nascendo, também nós nos tornamos seu Corpo, renascendo. Somos membros de Cristo e templos do Espírito Santo e por isto o Apóstolo diz: "Glorificai e trazei a Deus no vosso corpo" 10. Apresentando-nos o exemplo de sua humildade e mansidão, o Senhor comunica-nos aquela mesma força com que nos remiu, conforme prometeu: "Vinde a mim, vós todos, que trabalhais e estais sobrecarregados, e eu vos reconfortarei. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas almas" 11.
Tomemos, portanto, o jugo, em nada pesado e em nada áspero, da Verdade que nos guia e imitemos na humildade aquele a cuja glória queremos ser configurados. Que nos auxilie e nos conduza às suas promessas quem em sua grande misericórdia é poderoso para apagar nossos pecados e completar seus dons em nós, Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina pelos séculos dos séculos. Assim seja.

FONTE:
GOMES, Cirilo Folch, OSB. Antologia dos Santos Padres. Coleção "Patrologia". Ed. Paulinas, São Paulo, 1985.
NOTAS:
[1] Jo 53, 8;
[2] Jo 1, 14;
[3] Mt 1, 23 (cf. Is7, 14);
[4] Jo 14, 38;
[5] Jo 10, 30;
[6] FI 2, 6;
[7] Jo 10, 30;
[8] Gl 4, 4;
[9] Jo 1, 3;
10 1Cor 6



Quem foi Leão Magno?
Leão foi grande no trabalho e na santidade. Leão Magno nasceu em Toscana (Itália) no ano de 395 e depois de entrar jovem no seminário, serviu a igreja de forma santa e prestativo.
Ao ser eleito bispo em Roma, em 440, teve que evangelizar e governar a Igreja numa época brusca do Império Romano, pois já sofria com as heresias e invasões dos povos bárbaros, com suas violentas invasões.
Leão enfrentou e condenou o veneno de várias mentiras doutrinais, porém, combateu com intenso fervor o monofisismo que defendia, mentirosamente, ter Jesus Cristo uma só natureza e não a Divina e a humana em uma só pessoa como é a verdade.
O Concílio de Calcedônia foi o triunfo da doutrina e da autoridade de Leão. Os 500 Bispos que o Imperador convocara, para resolverem sobra a questão do monofisismo, limitaram-se a ler a carta de Leão, exclamando ao mesmo tempo: “Roma falou por meio de Leão, a causa está decidida; causa finita est”.
Quanto à dimensão social, Leão foi crescendo, já que com a vitória dos desordeiros bárbaros sobre as forças do Império Romano, a última esperança era o Bispo de Roma, que conseguiu salvar da destruição, a Itália, Roma e muitas pessoas.
Átila ultrapassara os Alpes e entrara na Itália. O Imperador fugia e os generais romanos escondiam-se. Leão era a única força capaz de impedir a ruína universal. Leão sai ao encontro do conquistador bárbaro, acampado às portas de Mântua. É certo que o bárbaro abrandou-se ao ver diante de si, em atitude de suplicante, o Bispo dos cristãos e retrocedeu com todo o seu exército.
Dentre tantas riquezas em obras e escritos, Leão Magno deixou-nos este grito: “Toma consciência, ó cristão da tua dignidade, já que participas da natureza Divina”.
Entrou no Céu no ano de 461.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Natal e os Pais da Igreja

 

O Natal dos primeiros cristãos, segundo os Padres da Igreja.

 Chamamos “Padres da Igreja” ou “Pais da Igreja” aqueles homens que, entre os séculos II e VII, contribuíram, com a sua ação, pregação e obras escritas, para a transmissão, aprofundamento e consolidação da fé e da Igreja de Cristo que vem dos Apóstolos até aos nossos dias. Alguns destes mestres da palavra e da doutrina eram cristãos leigos, mas a maioria foram pastores das comunidades cristãs com as quais partilhavam e nutriam a fé através da palavra pregada ou escrita. Nem tudo ficou escrito, e muito do que escreveram perdeu-se no percurso dos séculos. Mesmo assim, chegou até nós uma significativa amostra do que foi a vida e a reflexão destes primeiros séculos cristãos. Nomeadamente, no que concerne ao Natal de Jesus, dispomos de um vasto conjunto de textos que nos introduzem no verdadeiro espírito da Natividade. Vale, pois, a pena, hoje que nos queixamos de um progressivo esvaziamento do verdadeiro “espírito do Natal”, escutar a voz daqueles que continuam a ser nossos “Pais” na fé e na cultura cristã.
Embora a máxima atenção dos primeiros cristãos se tenha concentrado na celebração do mistério da Páscoa de Cristo, eles sabem que esta solenidade é indissociável do Natal e de todo o acontecimento da Encarnação de Jesus. Para os cristãos de ontem e de hoje, o Natal assinala o apogeu da história de Deus com os homens. S. Leão Magno, papa entre 440 e 460 que, num dos seus numerosos sermões sobre o Natal, recorda-nos que «a bondade divina sempre olhou de vários modos e de muitas maneiras pelo bem do género humano, e são muitos os dons da sua providência, que na sua clemência concedeu nos séculos passados. Porém, nos últimos tempos superou os limites da sua habitual generosidade, quando, em Cristo, a própria Misericórdia desceu aos pecadores, a própria Verdade veio aos extraviados, e aos mortos veio a Vida. O Verbo, coeterno e igual ao Pai, assumiu a humildade da nossa natureza humana para nos unir à sua divindade, e Deus nascido de Deus, também nasceu de homem fazendo-se homem».

«A Palavra fez-se Carne»
O Deus dos cristãos não é um mito nem um livro, mas Palavra encarnada, uma presença interpelante na história dos homens. «Quando um profundo silêncio tudo envolvia e a noite ia a meio do seu curso, a vossa Palavra Omnipotente desceu dos céus, do seu trono real», lemos no Livro da Sabedoria (18, 14-15). E foi assim, em Belém, quando o vagir de um recém-nascido quebrou o silêncio do universo. Deus que, ao longo dos séculos tinha falado de muitos modos e a muitos povos, em Belém fez-se Pessoa. S. Inácio, bispo e mártir de Antioquia, pelos ano 100, fala desses “mistérios clamorosos que se realizaram no silêncio de Deus: a virgindade de Maria, o seu parto e a morte do Senhor». E logo explica como se revelaram tais mistérios ao mundo:
«No firmamento brilhou uma estrela maior do que todas as outras! A sua luz era indescritível. A sua novidade causou estranheza. Mas todos os demais astros, incluindo o Sol e a Lua, fizeram coro à Estrela. Esta, porém, ia arremessando a sua luz por sobre todos os demais. Houve, por isso, agitação. Donde lhes viria tão estranha novidade? Desde então, desfez-se toda a magia; suprimiram-se todas as algemas do mal. Dissipou-se toda a ignorância; o primitivo reino corrompeu-se, quando Deus se manifestou humanamente para a novidade de uma vida eterna».
O Natal assinala o triunfo de Cristo e a libertação de todas as formas de opressão, engano, alienação ou superstição. S. Efrém, teólogo e poeta sírio do século IV que nos deixou um vasto conjunto de poemas e textos sobre o Natal, retoma esta convicção de S. Inácio quando vê no «menino que se encontra na manjedoura … aquele que rompeu o jugo que a todos oprimia». Como operou tal libertação? «fazendo-se Ele mesmo – continua S. Efrém - servo para nos chamar à liberdade». Santo Agostinho refere-se frequentemente em seus sermões natalícios ao silêncio eloquente do bebé de Belém, patente na voz das criaturas que exteriorizam a alegria da sua libertação.
Belém é, pois, para nós, uma lição eloquente. Com o seu nascimento na silente noite de Belém, o Menino divino, diz S. Agostinho, «mesmo sem dizer nada, deu-nos uma lição, como se irrompesse num forte grito: que aprendamos a tornar-nos ricos nele que se fez pobre por nós; que busquemos nele a liberdade, tendo Ele mesmo assumido por nós a condição de servo; que entremos na posse do céu, tendo Ele por nós surgido da terra».

Nasceu o Sol de Justiça
O nascimento de Jesus em Belém marca erupção de uma nova era para toda a humanidade, mas também para todo o cosmo criado. Não admira, pois, que os cristãos tenham intencionalmente associado o Natal de Jesus ao destino da humanidade e do mundo que os antigos consideravam “estar escrito nos astros”. Se é verdade que estão por provar as razões e circunstâncias pelas quais os cristãos escolheram a data de 25 de dezembro para celebrar o Natal do Salvador, facto é que tirarão bom partido da coincidência desta data com as celebrações pagãs e as ocorrências cósmicas. É frequente encontrar nos escritos patrísticos exortações como esta de S. Agostinho: «Alegremo-nos, irmãos, rejubilem e alegrem-se os povos. Este dia tornou-se para nós santo não devido ao astro solar que vemos, mas devido ao seu Criador invisível, quando se tornou visível para nós, quando o deu à luz a Virgem Mãe». Prudêncio, poeta hispânico do século IV, exprime essa alegria universal num extenso hino composto para o dia 25 de dezembro. Neste dia, Cristo é apresentado como o verdadeiro “Sol invictus”: «Com crescente alegria brilhe o céu/ e dê-se parabéns a si a gozosa terra:/ de novo, passo a passo, sobre o astro/ do dia aos seus caminhos anteriores…/ Oh! Santo berço do teu presépio,/ eterno Rei, para sempre sagrado/ para todos os povos e pelos próprios/ animais sem voz reconhecida».
Cientes de que a vinda de Cristo não veio negar mas responder às ânsias ancestrais da humanidade, os pregadores identificam Cristo, que «por nosso amor nasceu no tempo», com a luz libertadora das trevas do erro e da tirania dos astros:
«Reconheçamos o verdadeiro dia e tornemo-nos dia! Éramos, na verdade, noite quando vivíamos sem a fé em Cristo. E uma vez que a falta de fé envolvia, como uma noite, o mundo inteiro, aumentando a fé a noite veio a diminuir. Por isso, com o dia de Natal de Jesus nosso Senhor a noite começa a diminuir e o dia cresce. Por isso, irmãos, festejemos solenemente este dia; mas não como os pagãos que o festejam por causa do astro solar; mas festejemo-lo por causa daquele que criou este sol. Aquele que é o Verbo feito carne, para poder viver, em nosso benefício, sob este sol: sob este sol com o corpo, porque o seu poder continua a dominar o universo inteiro do qual criou também o sol. Por outro lado, Cristo com o seu corpo está acima deste sol que é adorado, pelos cegos de inteligência, no lugar de Deus que não conseguem ver o verdadeiro sol de justiça» (S. Agostinho).
Segundo S. Máximo, bispo de Turim no século IV, «Jesus é o novo sol que atravessa as paredes, invade os infernos, perscruta os corações. Ele é o novo sol que com os seus espíritos faz reviver o que está morto, restaura o que está velho, levanta o que está decadente e purifica ainda, com o seu calor, aquilo que é impuro, aquece o que está frio e consome o que o que não presta».
Como vemos, na pregação dos primeiros cristãos, o presépio está profundamente associado à natureza que, como livro de catequese escrito pelo Criador, nos ensina a celebrar e a viver o Natal do Salvador. Neste sentido, vale a pena continuarmos a ouvir as palavras sempre atuais de S. Máximo turinense:
«Preparemo-nos pois, irmãos, para acolher o Natal do Senhor, adornemo-nos com vestes puras e elegantes! Falo, claro está, das vestes da alma, não do corpo… Adornemo-nos não com seda, mas com obras boas! Pois as vestes elegantes ornam o corpo, mas não podem adornar a consciência; pois seria muito vergonhoso trazer sob elegantes vestes elegantes, uma consciência contaminada. Procuremos acima de tudo embelezar os nossos afetos íntimos, e poderemos então vestir belas roupas; lavemos as manchas da alma para usarmos dignamente roupas elegantes! Não adianta dar nas vistas pelas vestes se estamos sujos em pecados, porque quanto a consciência está escura, todo o corpo fica nas trevas. Temos, porém, com que lavar as manchas da nossa consciência. Pois está escrito: Dai esmola e tudo será puro em vós (Lc 11,41). É importante este mandamento da esmola: graças a ele, ao operarmos com as mãos ficamos lavados no coração».

Glória a Deus nas alturas, e paz na terra aos homens
Cristo nasceu homem para restituir à humanidade e a toda a criação a sua beleza e dignidade. É neste sentido que os Padres interpretam a mensagem dos anjos na noite santa. Essa voz é a expressão da alegria pelo facto de céu e terra, Deus e humanidade se abraçaram para sempre. A partir de agora, anjos e homens podem cantar juntamente a beleza do cosmo que se exprime num único hino de louvor: glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade. A alegria foi, segundo S. Efrém, muito maior no nascimento do que na conceção, pois «só um anjo anunciou a sua conceção, enquanto que para o seu nascimento uma multidão de anjos O anunciaram». Ao lembrar esse grande acontecimento, o poeta siríaco do século VI, Romano Melode, exorta: «Terra e céu rejubilem juntamente, diante do Emanuel que os profetas anunciaram, tornado criança visível, que dorme num presépio». E, num outro poema, continua: «A alegria acaba de nascer numa gruta. Hoje o coro os coros dos anjos unem-se a todas as nações para celebrar a virgem imaculada que neste dia deu à luz o Salvador. Hoje toda a humanidade, desde Adão, dança. Bendito seja Deus, recém-nascido».
O Natal é a grande festa de toda a humanidade, em que ninguém se deve sentir à margem ou indiferente, como no-lo recordam os sermões natalícios da S. Leão Magno:
«Nasceu hoje, irmãos, o nosso Salvador. Alegremo-nos! Não pode haver tristeza quando nasce a vida; a qual, destruindo o temor da morte, nos enche com a alegria da eternidade prometida. Ninguém está excluído da participação nesta alegria; a causa desta alegria é comum a todos, porque nosso Senhor, aquele que destrói o pecado e a morte, não tendo encontrado ninguém isento de pecado, a todos veio libertar. Exulte o santo porque está próxima a vitória; rejubile o pecador, porque é convidado ao perdão; reanime-se o pagão, porque é chamado à vida… Por isso é que, quando o Senhor nasceu, os anjos cantaram em alegria ‘glória a Deus nas alturas’ e anunciaram ‘paz na terra aos homens de boa vontade’. Porque veem a Jerusalém celeste ser formada de todas as nações do mundo, obra inexprimível do amor divino, que, se dá tanto gozo aos anjos nas alturas do céu, que alegria não deverá dar aos homens cá na terra?».

Deus fez-se homem para que o homem venha a ser divino
Nesta sentença recorrente nos escritores cristãos antigos está sintetizado o significado profundo do Natal. Voltemos a dar a voz a S. Agostinho: «Hoje nasceu para nós o Salvador. Nasceu, portanto, para todo o mundo o verdadeiro sol. Deus Fez-se homem para que o homem se fizesse Deus. Para que o escravo se tornasse senhor, Deus assumiu a condição de servo. Habitou na terra o morador do céu para que o homem, habitante da terra, pudesse encontrar morada nos céus». E, num outro sermão de Natal, o bispo de Hipona volta a recordar que Deus, em Belém, se fez pobre para nos enriquecer com os seus dons:
«Ele está deitado numa manjedoura, mas contém o universo inteiro; mama num seio materno, mas é o pão dos anjos; veio em pobres panos, mas reveste-nos de imortalidade; é amamentado, mas é também adorado; não encontrou lugar na estalagem, mas constrói para si um templo no coração dos seus fiéis. Tudo isto para que a fraqueza se tornasse forte e a prepotência se tornasse fraqueza. Por isso, não só não menosprezamos, mas mais admiramos o seu nascimento corporal e reconhecemos neste acontecimento quanto a sua imensa dignidade se humilhou por nós».

A Verdade brotou da terra
A Palavra vinda do Céu fecundou a terra e desta brotou a verdade e a justiça. Uma das preocupações constantes dos Padres da Igreja vai ser a de afirmar que o Filho de Deus é também filho de Maria, isto é, o Menino de Belém é todo Deus e todo homem: «Aquele que estava deitado na manjedoura fez-se frágil, mas não renunciou à sua condição divina; assumiu aquilo que não era, mas permaneceu aquilo que era. Eis que temos diante de nós Cristo menino: cresçamos juntamente com Ele», diz S. Agostinho. O bispo hiponense, num outro sermão, dirige-se ao seu povo nestes termos:
«Chama-se dia do Natal do Senhor a data em que a Sabedoria de Deus se manifestou como criança e a Palavra de Deus, sem palavras, imitou a voz da carne. A divindade oculta foi anunciada aos pastores pela voz dos anjos e indicada aos magos pelo testemunho do firmamento. Com esta festividade anual celebramos, pois, o dia em que se realizou a profecia: A verdade brotou da terra e a justiça desceu do céu (Sl 84,12)».
Esta afirmação retomada do salmo 84 servirá de mote a vários dos sermões natalícios de Agostinho. Num outro sermão, o bispo de Hipona explica o significado profundo de tal expressão:
«Neste dia, o Verbo de Deus revestiu-se de carne e nasceu de Maria virgem. Nasceu de modo admirável... Donde veio Maria? De Adão. Donde veio Adão? Da terra. Se Adão veio da terra e Maria de Adão, também Maria é terra. E se Maria é terra, entendemos quando cantamos: a verdade brotou da terra».
Contra os negadores da dignidade da carne e das criaturas (docetas, Gnósticos, marcionitas, maniqueus…) não se cansam de salientar a realidade humana de Jesus, sublinhando os detalhes do seu nascimento. S. Efrém compôs vários poemas natalícios em que coloca na boca de Maria belíssimos solilóquios que se inspiram nas cantigas de embalar à moda antiga. Eis algumas das suas expressões: « Maria, tua mãe, tua irmã, tua esposa e tua serva, logo te acaricia, te abraça e beija, canta, ora e agradece. Depois dá-te o peito, te aconchega e embala e sorri para ti e tu ris e mamas no seu peito». Maria, fez tudo o que faria qualquer mãe encantada com seu filho para o fazer feliz. Assim, contemplando a criança divina entre seus braços, exclama: «Como abrirei a fonte do leite, para ti que és a origem e termo de todas as coisas? E como te darei alimento, a ti que nutres tudo? Ou como tocarei os panos que te envolvem, Tu que te revestiste de esplendor? Filho do homem não és, para que eu te cante louvores à moda habitual». Entretanto o menino desperta e, com o seu choro infantil, interrompe estas meditações de Maria que continua a «acariciá-lo, a embalá-lo, beijando-o e afagando-o contra si. Ele olha para ela e baloiça como menino já nascido no presépio envolto em panos. E quando começa a chorar, ela dá-lhe o peito, acaricia-o, embala-o, baloiça-o sobre os joelhos e Ele acalma-se».

Os melhores preparativos para o Natal
Ontem, como hoje, os homens facilmente caíram na tentação do valorizar as aparências, os enfeites exteriores e até a tirar vantagens materiais das festas natalícias. Contra esta desvirtuação tão evidente nos nossos dias já advertiam os antigos pregadores.
«Esta é a nossa festa», proclama S. Gregório de Nazianzo, «isto celebramos hoje: a vinda de Deus ao meio dos homens, para que, também nós cheguemos a Deus… celebremos, pois, a festa: não uma festa popular, mas uma festa de Deus, não como o mundo quer, mas como Deus quer; não celebremos as nossas coisas mas as coisas daquele que é nosso Senhor…».
Como fazê-lo? Pergunta este bispo de Constantinopla do século IV. E responde sem hesitar:
«Não embelezemos as portas das casas, não organizemos festas, nem adornemos as estradas, não dêmos banquetes em nosso proveito nem concertos para mero agrado dos ouvidos, não exageremos nos adornos nem nas comidas… e tudo isto enquanto outros padecem fome e necessidades, esses que nasceram do mesmo barro que nós».

Fr. Isidro Lamelas, OFM
Professor de Patrística na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
Publicado em 24.12.2013

O que o texto diz?
Como era o Natal para os Pais da Igreja?
Como ele contribui para sua espiritualidade?


quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Livro V - Capítulos 2 a 7

32
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro V – Capítulos 2 a 7

Texto Bíblico: Efésios 2.1-6

II - De como os mártires, amados de Deus, acolhiam e cuidavam dos que haviam falhado na perseguição
III - Que aparição teve em sonhos o mártir Atalo
IV - De como os mártires recomendavam Irineu em sua carta
V - De como Deus atendeu as orações dos nossos e fez chover do céu para o imperador Marco Aurélio
VI - Lista dos bispos de Roma
VII - De como inclusive até aqueles tempos realizavam-se por meio dos fiéis grandiosos milagres

 II - De como os mártires, amados de Deus, acolhiam e cuidavam dos que haviam falhado na perseguição
1.            Isto foi o que, sob o mencionado imperador, aconteceu às igrejas de Cristo, e partindo disto pode-se também conjeturar num cálculo razoável o que ocorreu nas demais províncias; será conveniente juntar ao que foi dito mais algumas passagens do mesmo documento, nas quais se descreve a suavi­dade e humanidade dos citados mártires com estas mesmas palavras:
2.            "Os quais, no zelo e imitação de Cristo, que subsistindo em forma de Deus não considerou usurpação o ser igual a Deus[1], chegaram a tão alto grau que, apesar de sua glória e de terem dado testemunho, não uma vez ou duas, mas muitas vezes mais, e de terem sido retirados das feras e de estarem cobertos por toda parte de queimaduras, equimoses e feridas, nem eles próprios se proclamaram mártires nem a nós mesmos permitiram que os chamássemos por este nome; mas antes, se algum de nós por carta ou por palavra se dirigia a eles como a mártires, repreendiam-no severamente.
3.            E compraziam-se em ceder o título do martírio a Cristo, o fiel e verdadeiro mártir, primogênito dos mortos e autor da vida de Deus, e recordando os mártires que já haviam partido, inclusive diziam: 'Aqueles sim é que são mártires, posto que Cristo teve por bem levá-los consigo em sua confissão e selou seus martírios com suas mortes; nós porém somos uns confessores medianos e sem expressão'; e com lágrimas exortavam os irmãos pedindo-lhes que se fizessem assíduas orações para lograr sua consumação.
4.            E com seu trabalho demonstravam a força de seu martírio, dirigindo a palavra com inteira liberdade aos pagãos, e manifestavam sua nobreza mediante sua paciência, sua integridade e sua impavidez; mas o título de mártires dado pelos irmãos eles rechaçavam, repletos do temor de Deus."
5.            E logo, pouco mais adiante, dizem:
"Humilhavam-se sob a mão poderosa que agora os tem grandemente exal­tados. E então defendiam a todos e não condenavam a ninguém, desatavam a todos e não atavam ninguém, e como Estevão, o mártir perfeito, rogavam pelos que lhes infligiam os tormentos: Senhor, não lhes imputes este pecado. E se rogava pelos que o apedrejavam, quanto mais não faria pelos irmãos?"
6.   E novamente, depois de outros detalhes, dizem:
"Porque este foi para eles seu maior combate contra ele[2], pela verdade de seu amor, para que a besta se engasgasse e vomitasse vivos os que primeiro pensava ter engolido. Efetivamente, não se mostraram arrogantes frente aos caídos, mas sim, com entranhas maternas, acudiam em socorro dos necessitados com sua própria abundância e, derramando muitas lágrimas por eles ao Pai, pediam vida e para eles a davam.
7.      Também a repartiam aos demais quando, vencedores em tudo, marchavam para Deus. Sempre amaram a paz, e em paz emigraram para Deus recomendando-nos a paz, não deixando para trás trabalhos para a mãe[3] nem revolta e guerra para os irmãos, mas alegria, paz, concórdia e amor."
8.      O dito sobre o amor daqueles bem-aventurados para com os irmãos caídos poderá ser útil, por causa da atitude desumana e inclemente daqueles que, depois disto, tornaram-se implacáveis nos membros de Cristo.

III - Que aparição teve em sonhos o mártir Atalo
1. O mesmo escrito sobre os citados mártires contém ainda outro relato digno de menção e não haverá inconveniente em que eu o proponha ao conheci­mento dos leitores. É assim:
2.             Alcibíades, um deles, levava uma vida austera até a miséria. A princípio não recebia nada em absoluto, nada ingerindo além de pão e água. Inclu­sive no cárcere tratava de seguir o mesmo regime. Mas a Atalo, depois de seu primeiro combate travado no anfiteatro, foi revelado que Alcibíades não fazia bem não usando das criaturas de Deus e deixando para os outros um exemplo de escândalo[4].
3.      Alcibíades, persuadido, começou a tomar de tudo sem reservas e dava graças a Deus[5]. A graça de Deus não se descuidava deles, mas antes, o Espírito Santo era seu conselheiro. E baste assim destes casos.
4.      Como foi justamente então que os partidários de Montano, Alcibíades[6] e Teodoto, começaram a dar a conhecer entre muitos na Frígia sua opinião sobre a profecia (pois os muitos outros milagres do carisma de Deus, que até então ainda vinham se realizando pelas diversas igrejas, produziam em muitos a crença de que também aqueles eram profetas), havendo surgido discrepâncias por sua causa, novamente os irmãos da Gália formularam seu próprio juízo, precavido e inteiramente ortodoxo, sobre eles, expondo também diferentes cartas dos mártires consumados entre eles, cartas que, estando ainda no cárcere, haviam escrito aos irmãos da Frígia, e não somente a eles, mas também a Eleutério, então bispo de Roma, como embaixadores em favor da paz das igrejas.

IV - De como os mártires recomendavam Irineu em sua carta
1.             Os mesmos mártires recomendavam Irineu, que já então era presbítero da igreja de Lion[7], ao mencionado bispo de Roma, dando sobre ele numerosos testemunhos, como demonstram as palavras seguintes:
2.             "De novo e sempre rogamos que gozes de saúde em Deus, pai Eleutério. Estimulamos nosso irmão e companheiro Irineu para que te leve esta carta, e te rogamos que o tenhas por recomendado, zelador como é do testamento de Cristo, porque, sabendo que um cargo confere justiça a alguém, desde o primeiro momento o recomendaríamos como presbítero da Igreja, o que precisamente é."
3.      Que necessidade há de transcrever a lista dos mártires, assim dos que mor­reram por decapitação como dos que foram lançados como pasto para as feras, como também dos que morreram no cárcere e o número dos confessores sobreviventes até aquele momento? Para quem goste, será fácil repassar detalhadamente estas listas se tomar em mãos o escrito que, como já disse, encontra-se recolhido em nossa Recompilação de martírios. Mas isto foi o ocorrido sob Antonino[8].

V - De como Deus atendeu as orações dos nossos e fez chover do céu para o imperador Marco Aurélio
1.            E tradição que o irmão deste, Marco Aurélio César, estando em ordem de batalha frente aos germânicos e aos sármatas, passava grande dificuldade por causa da sede que castigava seu exército. Mas os soldados que serviam sob a assim chamada legião de Melitene[9] - que por sua fé subsiste desde então até hoje -, formados frente ao inimigo, puseram seus joelhos no chão, segundo nosso familiar costume de orar, e dirigiram suas súplicas a Deus.
2.     Tal espetáculo pareceu, na verdade, muito estranho aos inimigos, mas outro documento conta que no mesmo instante foram surpreendidos por outro espetáculo ainda mais estranho: um furacão punha em fuga e aniquilava os inimigos, enquanto que a chuva caía sobre o exército dos que haviam invocado o socorro divino e o reanimava quando já estava todo ele a ponto de perecer pela sede.
3.            O relato conserva-se inclusive entre os escritores alheios a nossa doutrina que se preocuparam em escrever sobre aqueles tempos. Também os nossos o dão a conhecer. No entanto, os historiadores de fora, alheios a nossa fé, expõe o prodígio mas não confessam que este se realizou pelas orações dos nossos; já os nossos, como amantes da verdade, transmitem o ocorrido com simplicidade e sem malícia.
4.      Destes poderia ser também Apolinário, que afirma que a legião autora do prodígio por sua oração recebeu do imperador, a partir de então, um nome adequado ao sucedido, que em língua latina se diz Fulmínea.
5.      Testemunha destes fatos, digno de crédito, poderia também ser Tertuliano, que dirigiu ao senado a Apologia latina em favor da fé, da qual fizemos menção mais acima[10], e confirma o relato com uma demonstração mais ampla e mais clara.
6.      Escreve pois também ele e diz que até agora conservam-se cartas de Marco, o imperador mais sábio, nas quais ele mesmo atesta que, estando seu exército a ponto de perecer na Germania e por falta de água, salvou-se pelas orações dos cristãos. E segue dizendo Tertuliano que o imperador ameaçou inclu­sive com a pena de morte aos que tentassem acusar-nos.
7.   A tudo isso o mesmo autor junta o seguinte:
"Que tipo de leis são estas então, ímpias, injustas e cruéis, seguidas somente contra nós? Vespasiano não as observou, apesar de ter vencido os judeus; Trajano teve-as em parte como nada, ao impedir que se perseguissem os cristãos, e Adriano, apesar de ocupar-se com muita curiosidade com muitas coisas, não as sancionou, como tampouco o que é chamado Pio." Mas isto, que cada um o deixe onde quiser.
8.             Nós, por nossa parte, voltemos ao fio do que se segue. Quando Potino, com seus noventa anos cumpridos, morreu em companhia dos mártires da Gália, Irineu recebeu em sucessão o episcopado da igreja de Lion, que Potino havia regido. Sabemos que ele, em sua juventude, foi ouvinte de Policarpo.
9.      No livro terceiro de sua obra Contra as heresias expõe a sucessão dos bispos de Roma até Eleutério, de cuja época também investigamos os aconteci­mentos, e estabelece a lista como se, de fato, sua obra fosse composta nos tempos deste; escreve como segue:

VI - Lista dos bispos de Roma
1.            "Os bem-aventurados apóstolos, depois de haverem fundado e edificado a Igreja, puseram o ministério do episcopado em mãos de Lino. Este Lino é mencionado por Paulo em sua carta a Timóteo[11].
2.            Sucede-o Anacleto, e depois deste, em terceiro lugar a partir dos apóstolos, obtém o episcopado Clemente, que também havia visto os bem-aventurados apóstolos e tratado com eles, e tinha ainda ressoando-lhe nos ouvidos a pregação dos apóstolos e diante dos olhos sua tradição. E não apenas ele, porque então ainda sobreviviam muitos que haviam sido instruídos pelos apóstolos.
3.            Quando nos tempos deste Clemente surgiu entre os irmãos de Corinto uma não pequena dissensão, a igreja de Roma escreveu aos Coríntios uma carta importantíssima tentando reconciliá-los na paz e renovar sua fé e a tradição que tinham recebido dos apóstolos."
E depois de breve espaço diz:
4.   "A este Clemente sucede Evaristo, e a Evaristo, Alexandre; depois é insti­tuído Sixto, o sexto portanto a partir dos apóstolos; e depois deste, Telésforo, que também sofreu gloriosamente o martírio; logo Higinio; depois Pio, e depois deste, Aniceto; havendo Sotero sucedido a Aniceto, agora é Eleutério que ocupa o cargo do episcopado, em décimo segundo lugar a partir dos apóstolos.
5.   Pela mesma ordem e com a mesma sucessão chegaram até nós a tradição e a pregação da verdade que procederam dos apóstolos na Igreja.

VII - De como inclusive até aqueles tempos realizavam-se por meio dos fiéis grandiosos milagres
1.            Irineu, coincidindo com as narrações que discutimos anteriormente nos livros que, em número de cinco, intitulou Refutação e destruição da falsamente chamada gnosis, esboça também estas coisas. No livro segundo da mesma obra assinala que, em algumas igrejas, persistiram inclusive até ele manifestações do maravilhoso poder divino. Ele o diz com estas palavras:
2.            "Muito lhes falta para ressuscitar um morto[12], como fizeram o Senhor e os apóstolos mediante a oração e como se deu na comunidade de irmãos muitas vezes: por causa da necessidade, a igreja toda do lugar estava rogando com jejuns e repetidas súplicas, e o espírito do morto voltou, e o homem recebeu o favor pela graça das orações dos santos."
E de novo, depois de outras coisas, diz:
3.            "Mas se chegam a dizer que o Senhor fez tais prodígios apenas em aparência, então os faremos recorrer aos escritos proféticos e por estes lhes demons­traremos que assim está previsto sobre Ele, e que assim sucedeu com segu­rança e que somente Ele é o Filho de Deus. Por isso, também em seu nome os que são verdadeiramente seus discípulos recebem d'Ele a graça e a utilizaram em benefício dos demais homens, segundo o dom que cada um recebeu d'Ele[13].
4.     Uns, efetivamente, expulsam firme e verdadeiramente os demônios, de modo que muitas vezes aqueles mesmos que foram purificados dos maus espíritos crêem e estão na Igreja; outros têm conhecimento antecipado do porvir, assim como visões e declarações proféticas; outros ainda, curam os enfer­mos mediante a imposição das mãos e os restituem sãos; mais ainda, como dissemos, inclusive mortos foram ressuscitados e permaneceram conosco muitos anos. E para que mais?
5. Não é possível dizer o número de graças que por todo o mundo a Igreja recebeu de Deus em nome de Jesus Cristo crucificado sob Pôncio Pilatos e que cada dia utiliza em benefício dos pagãos, sem nunca enganar ninguém nem despojá-lo de seu dinheiro, porque gratuitamente o recebeu de Deus e gratuitamente o serve."
6.   E em outro lugar escreve o mesmo:
"Assim como também ouvimos que há muitos irmãos na Igreja que têm carismas proféticos e que por meio do Espírito falam em todo tipo de línguas, que põe a descoberto os segredos dos homens quando é proveitoso e que explicam os mistérios de Deus."
Isto é o que há sobre a permanência dos diferentes carismas até os tempos mencionados entre os que deles eram dignos.



1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui para a sua espiritualidade?







[1] Fp 2:6.
[2] Devido ao corte da citação, não aparece a quem se refere, mas trata-se sem dúvida do demônio.
[3] A Igreja.
[4] O estilo de vida de Alcibíades não indica que fosse necessariamente um montanista.
[5] 1 Tm 4:3-4.
[6] Não o mesmo Alcibíades mencionado acima, mas um companheiro de Montano.
[7] Entre 174 e 178.
[8] Marco Aurélio.
[9] Importante cidade da Capadócia, sede da XII legião. Não é estranho que tivesse em suas fileiras bom número de cristãos, ainda que não fossem a maioria.
[10] Vide II:2:4; 25:4; III:33:3. O Apologeticum. não foi dirigido ao senado, mas aos governadores.
[11] 2 Tm 4:21.
[12] Aos seguidores de Simão e Carpócrates.
[13] Ef 4:7.